6.5.04

Requiem pela comunicação social

Mergulho nos tachos, misturando o Mascarpone com as gemas batidas em açúcar. Embebidos os palitos La Reine em café, depois aspergidos com rum, está a televisão ligada com os repórteres de rua em alta gritaria, relatando cada segundo da “libertação” de Carlos Cruz.

Ia deitando uma olhadela à televisão, ia pasmando com o espectáculo mediático que se dividiu entre a prisão de onde Cruz era libertado e o portão da sua casa no Estoril. Os habituais mirones compareceram, na patética manifestação de solidariedade (que, aposto, Cruz ignora), colorindo o espectáculo que as televisões e rádios levavam a milhões de espectadores.

À medida que os minutos iam passando, aumentava a minha perplexidade com certas informações divulgadas pelos repórteres, com o frenesim instalado, com a correria dos “famosos” a casa de Carlos Cruz, em busca de uma fotografia para alimentar (mais uma) aparição nas revistas cor-de-rosa. Como não ficar perplexo, por exemplo, com a imagem de que Carlos Cruz estava ser “libertado”? Assim mesmo, a palavra grafada, porque o seu sentido não corresponde ao contexto. Os jornalistas informavam, com esfusiante entusiasmo, que Carlos Cruz estava em liberdade, deixando para nota de rodapé a verdade – a prisão domiciliária a que tinha sido remetido. A imagem difundida era a da justiça que tardou mas chegou, finalmente. Como se o apresentador estivesse a sair definitivamente, repito, definitivamente em liberdade.

Nada me move contra Carlos Cruz. Nem sequer tenho uma opinião formada acerca do seu pretenso envolvimento no processo de pedofilia na Casa Pia. Não vou dizer que acho que ele é culpado ou inocente, porque essa é uma tarefa que cabe à justiça e não ao sexto sentido popular. O julgamento popular que os órgãos de comunicação social teimam em fazer é inaceitável. Foi o que se passou anteontem, com a ideia de que Cruz saía, vitorioso mas vergado por lágrimas de emoção, da prisão onde estava recluso.

É a comunicação social que temos, curvada a critérios fáceis de conquista de audiências, deixando à margem uma função pedagógica. Uma informação isenta e de rigor é peça essencial para que os destinatários não tenham uma visão enviesada do que se passa em seu redor. Se calhar é por isto que a comunicação social é cada vez menos imparcial e objectiva: para empurrar o público num determinado sentido...

Dizem que a comunicação social é o quarto poder. Discordo. À medida que o tempo passa, constituiu-se num genuíno primeiro poder. O poder a que todos os restantes sucumbem, cientes que a mensagem sabiamente transportada (ainda que não rigorosa) pode transformar pequenas mentiras numa verdade insofismável.

Paradoxalmente, a comunicação social eleva-se a um estatuto de ímpar importância numa era em que a sua qualidade, isenção e rigor sofrem um desgaste evidente. O sucesso da comunicação social varia num sentido inverso da qualidade, isenção e rigor da informação. É o nivelamento por baixo. Consequência da “democratização” da informação, que é avidamente procurada por cada vez mais gente, independentemente de condição social e habilitações escolares. Afinal, está tudo certo. Temos a comunicação social que vai ao encontro dos desejos da maioria dos cidadãos. É neste sentido que a “democratização” (não sei se será mais correcto falar em “massificação”, ou mesmo “fulanização”) da informação é uma dádiva da participação dos cidadãos na sociedade.

Pela parte que me toca, um desejo: deixar a dependência do consumo de informação, desligar-me do mundo enviesado que me é trazido, olhar para coisas mais belas que passam debaixo do nariz mas que os olhos não alcançam (ou não querem alcançar).


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