Foi a segunda vez que estive em Berlim. Em ambas as vezes não tive a sorte de apanhar a cidade com bom tempo. Da primeira, estávamos em Janeiro, e Berlim apareceu-me coberta de neve. Como admiro o espectáculo proporcionado pela neve, o meu primeiro contacto com Berlim teve o fascínio do manto branco que cobria a cidade. Mas ao mesmo tempo foram dias sombrios pela atmosfera densa que pairava, com uma névoa congelante que tornava o dia carente de luminosidade.
Agora, em plena Primavera, o Inverno tinha outro encontro marcado comigo na Berlim revisitada. Uma chuva persistente, um vento que abanava as árvores e trazia uma sensação de desconforto, os pés molhados ao fim de alguns minutos de aventura pelas ruas de Berlim expostas a esta chuva inclemente.
Finalmente a chuva tinha deixado de cair. Saí à rua para um breve contacto com a cidade. Como o tempo escasseava, lembrei-me dos locais mais emblemáticos de Berlim e esbocei um trajecto que me levasse pela grandiosidade espartana da cidade. Devo dizer que Berlim fica aquém de Londres, Paris ou Roma quando as grandes metrópoles europeias são comparadas nas minhas preferências. Berlim tem, no entanto, um fascínio próprio, um simbolismo que está ausente nas outras cidades que mencionei. É uma cidade que aproveita a planura do terreno para se espraiar em avenidas extensas, que se perdem de vista.
Os edifícios da avenida mais conhecida (Unter der Linden) são sumptuosos, exalando a grandeza da Prússia imperial. É uma sucessão de edifícios majestosos, que se vai relevando aos olhos de quem percorre a pé a avenida. A estranheza assalta-me porque estes edifícios (e as igrejas) estão na parte que foi ocupada pela antiga República Democrática Alemã. Conhecida a tendência para reescrever a história por parte dos regimes comunistas, com a queda natural para eliminar os vestígios que representassem um passado repugnado pela doutrina oficial, é surpreendente que não tenha havido a tentação para deitar abaixo estes imponentes e monumentais edifícios e, em seu lugar, plantar outros, impessoais, esteticamente anódinos, bem ao gosto da tipologia comunista.
À medida que a Unter der Linden se aproxima do seu final, a porta de Brandenburgo vai crescendo no horizonte. O local em si é magnífico, na esteira de toda a imponência que a Prússia queria imprimir à sua existência imperial. Mas o local ganhou outro significado no século XX, por ter sido aqui que a derrocada do detestável muro de Berlim teve o seu ponto de ebulição. Foi aqui, na porta de Brandenburgo, que as pessoas do leste e do ocidente começaram a conviver depois de ultrapassada a barreira de um muro decadente. De um muro que era o sinal vivo da decadência de uma ideologia que tantas liberdades individuais cerceou, que tantas vidas ceifou quando essas pessoas procuravam escapar para o outro lado em busca da liberdade negada pela Alemanha de leste.
A porta de Brandenburgo tem este incomensurável valor simbólico. Sabe bem parar diante dela, imaginar as sensações inebriantes vividas pelas pessoas que testemunharam no local os acontecimentos tonificantes que haveriam de levar à desagregação do muro, sentir como esses momentos foram tão importantes para virar uma página negra (mais uma) da história da humanidade. O ar que se respira na porta de Brandenburgo é revigorante, um tributo à libertação de amarras que por tantos anos manietaram a liberdade individual em nome de asquerosos princípios totalitários.
Em Berlim respira-se o aroma da liberdade.
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