28.5.04

A flatulência do ex-ministro

Os que me conhecem mais de perto sabem que sou atacado por uma insanidade matinal: correr todos os dias, bem cedo, no Parque da Cidade. Não pensem que estou isolado nesta maluqueira. Não há um único dia em que não me cruze com pessoas que já vejo como companheiros de corrida – ainda que eles vão no sentido oposto ao meu. Desenganem-se os que acreditam que este acto tresloucado é um deserto de experiências enriquecedoras.

O episódio que vou relatar já se passou há alguns meses. Lembrei-me dele, de repente, quando fazia os exercícios matinais que antecedem mais uma corrida que desbrava as veredas do parque. Num dia de verão, já no fim da corrida, no período de descompressão, avistei um senhor alto, esguio, de óculos, ligeiramente careca, que tinha acabado de chegar ao parque. Quando me cruzei com ele fui assaltado pela dúvida. Era uma cara que me era conhecida. Com a dificuldade que tenho para associar caras a pessoas logo à primeira tentativa, só passado alguns minutos é que descobri que se tratava de um ex-ministro do último governo do engenheiro Guterres.

Acontece frequentemente, quando me cruzo com caras que me parecem familiares. A reacção instintiva é a de ter a sensação de que aquela cara é mesmo parecida com o tal fulano que é figura pública. Nunca faço a associação imediata entre a cara e a pessoa conhecida do público. Só passado alguns instantes é que concluo que, afinal, aquela cara pertence mesmo à pessoa que é uma figura pública.

Algo de hilariante sucedeu naquela manhã. Afogueado pelos derradeiros momentos da minha corrida, tentava descomprimir, sossegando a batida do coração. Mesmo ao meu lado, aí a quinze metros, estava o ex-ministro deitado de barriga para cima na laje de granito que faz de beiral de um muro não muito alto. Por uns segundos deitado, como que ganhando coragem para os exercícios que tinha programado. À primeira elevação, senti um ruído estranho, mas ao mesmo tempo…familiar. O barulho vinha dos lados do ex-ministro, até porque para além de mim e da minha cadela, minha companhia nestas lides, mais ninguém se encontrava por perto. Mas como estava ainda extenuado com o sprint final, não liguei ao ruído. Talvez fosse um estalido de um ramo que, empurrado pela brisa matinal, se tivesse quebrado.

Não passaram muitos segundos até que o mesmo som se repetisse. Ao segundo abdominal, o mesmo ruído que tinha ecoado pelos meus ouvidos. Comecei a desfazer as dúvidas. Mas esperei pela terceira elevação, para não tirar conclusões precipitadas. E não é que à terceira elevação o mesmo som, vindo das profundezas intestinais do ex-ministro, dava uma sonoridade diferente à manhã do Parque da Cidade? Aí fiquei sem dúvidas. Até porque se seguiram mais alguns abdominais, que até à quinta tentativa foram sendo entrecortados pela ventosidade de sua eminência. Este senhor, que uns meses antes era digno representante do governo que nos desgovernou, não tinha controlo no esfíncter!

Mais do que ter ficado admirado, pus-me a pensar se a minha presença não era inibidora, se não era suficiente para ele controlar a flatulência matinal. Até pode acontecer que tivesse incontinência gasosa. Sucede aos melhores. Mas vendo que estava ali ao seu lado outro cidadão – porventura não tenho ar de cidadão respeitoso – podia o senhor ex-ministro ter alguma contenção.

Afinal de contas, aquele despautério era a ilustração da sanha maldita do governo de que ele fez parte: sem respeito para com quem era governado, na esteira do desvario, do desatino, um governo sem rumo nem destino que acabou por ter o final que merecia. Ou então o senhor ex-ministro adivinhou que na sua presença estava um intransigente adversário do universo socialista…

Lanço a adivinha, para quem a queira fazer a sua aposta: de quem estou a falar?

(Em Atenas)

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