11.5.04

Um pai que se pressente

A torrente de emoções refulge de cada vez que as maravilhas da tecnologia oferecem uma visão de um filho ainda nascituro. Uma correcção é devida, pelo que se soube ontem: uma filha, sim, uma filha!

Detive-me nas imagens e não resisti a ser assaltado por um presságio. Vi-me, noites em claro, afagando-a no meu colo, dando-lhe o carinho necessário para que o sono chegue. Vi-me, deleitado, a encher-me de alegria por ver o seu sono tranquilo. Como me vi, extasiado, assistindo ao doce acto da amamentação. E os banhos em que delicadamente se joga o seu corpo contra as águas tépidas que lhe trazem prazer.

Senti-me a passar o tempo, vê-la numa cornucópia a crescer. O primeiro sorriso, os primeiros sons que se exaltam num labor comunicacional. As primeiras palavras que se registam, os primeiros passos que ficam na retina guardados para a posteridade. Imagino-a, feminina, com os seus cabelos compridos, face rosada, em gestos femininos e seguros, senhora do seu querer. Correndo pelas ruas, atrás de uma borboleta que num voo errante procura dela escapar. A alegria à solta, num turbilhão de emoções próprio de quem tem a felicidade de não saber como é o mundo que a rodeia.

As primeiras palavras escritas, os minutos passados com os trabalhos da escola, a cumplicidade a crescer. Retratos de emoções sem fim, pequenos gestos que se repetem sem canseira, num mundo só nosso que não cessa de se erguer a cada dia que passa. Os afectos que se constroem, com os afagos que não se rejeitam, com as reprimendas que esboçam um choro de tristeza, mas que são depois recompensadas pelo amor que segue numa pulsão infindável. O tacto, a mão na mão, o beijo depositado com ternura na sua pele alva e macia. Actos rotineiros, mas com o significado maior de serem gestos que preenchem uma vida como o que de melhor ela encontra.

Pressinto tudo isto e vejo o tempo a passar devagar. Anseios que se desdobram com a marcha contínua de uma gravidez. Uma máscara que quero caída assim que o tempo permitir. Deixar de me pressentir pai, para assumir a peito esta condição. Para sentir que cresci para a vida, que encontrei um novo mundo. Ou tentar arranjar forma de olhar para o mundo irrecusável com olhos de ver, através do amor trazido até a mim por uma junção de sentimentos que frutificaram uma nova vida. Ser construtivo pela injecção de felicidade que uma nova vida se apresta a trazer. Uma nova vida que vem ao mundo, um roteiro para mudar uma vida que se deixa amiúde derrotar pela decepção do mundo que há lá fora.

Mas isso não interessa. Porque começo a sentir que as exigências da nova vida que aí vem obrigam a um comportamento diferente. Menos dado à introspecção, mais virado para a abertura de espírito de uma partilha com a filha anunciada. Dando-lhe ânimo para ver as coisas diferentes, para as entender como eu mesmo não as consigo ver. Quem sabe se, neste exercício, não nasce também a vontade de compreender o que hoje escapa à minha capacidade.

Eis como uma nova vida é um manancial infindável de compensações interiores. Pelo amor que jorra e obriga a uma predisposição para amar sem compromissos nem limites. E pela força de mudança que pode varrer desde o interior.

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