31.12.04

O adeus a 2004

Último dia do ano, tempo de balanços – é o costume a que somos conduzidos. Olha-se para trás, condensa-se o que de bom o ano trouxe, tenta-se enxugar as tristezas dos maus momentos que foram fustigação pessoal. Vou ensaiar um balanço do ano recorrendo às letras do alfabeto. Para cada letra, um acontecimento marcante, pela positiva ou pela negativa; uma pessoa que deixou a sua marca; uma reflexão sobre algo que revelou a sua importância em termos pessoais.

Apito dourado – Uma das poucas boas notícias de 2004. Uma investida contra as regalias do futebol, que durante anos a fio insistiu em ser um mundo à parte, acostumado a benesses vedadas a outras actividades. O último acto: esperar vinte e cinco anos para que as manigâncias do “Papa do norte” tenham caído nas malhas da justiça. Supremo gozo!

Beleza – Ter ainda energia para descobrir coisas e pessoas que marcam o reencontro entre a vida e o que de belo ela tem. Pequenas coisas, pequenos gestos, coisas corriqueiras que têm tanto significado. Sentir que a beleza é um dom da vida, o leme que conduz a existência para além dos impiedosos descaminhos do quotidiano.

Comunicação social – Para um defensor do mercado, custa reconhecer que os efeitos da concorrência desenfreada têm sido maus. A qualidade anda pelas ruas da amargura. O sensacionalismo é o critério dominante. Derrotou o rigor da informação. Dirão os defensores do actual estado de coisas que a comunicação social apenas responde às preferências da audiência. Sinal de democratização da informação, pois o povo gosta de ver sangue, de deambular pelas perversidades que abundam, de se perder em coisas menores que são transformadas nas coisas mais importantes da vida. Só não tenho a certeza da ordem dos factores: se é a imprensa que apenas segue as preferências macabras e mesquinhas de uma população ignorante, ou se é a imprensa que alimenta este estado de coisas, afinal achincalhando-se a si mesma.

Democracia – Lugar-comum dizer-se que é o pior de todos os regimes se todos os demais forem excluídos. Tapar o sol com a peneira (por exemplo, desvalorizando o significado da abstenção meteórica em sucessivas eleições) não contribui para a qualidade da democracia. A crise do regime é indisfarçável. Evitar debater esta crise é um tabu que mostra a intolerância dos democratas. Como se tudo fosse passível de debate, menos a democracia em si. Posturas deste tipo apenas contribuem para o definhar da democracia. Com o perigoso cenário que se adivinha. As visões radicais podem dar ensinamentos salutares. Hans-Hermann Hoppe, com o livro Democracy – the God that Failedfornece interessantes pistas para reflexão.

Ena Pá 2000 – Vinte anos de carreira, vinte anos a contribuir para a cultura nacional. A arte de um resistente: Manuel João Vieira, altos e baixos (o último disco, “A luta continua”, deixa no ar um cheiro a “melhores dias já passaram”), mas um contributo inestimável. Aproximando-se eleições presidenciais, espero que o candidato Vieira não fique preso aos tabus de outros putativos candidatos (Cavaco & Guterres SA.) e intervenha, decidido, desorganizando com a sua rebeldia a monotonia política instalada.

Felino – O blog do autor, uma experiência diária de escrita, um ensaio de ginástica mental experimentada pela manhã. O gosto pela escrita, um refúgio ditado pelo cansaço da investigação a que a profissão obriga. Já lá vai quase um ano de palavras acumuladas.

Guerra – Ainda e sempre. Guerra, sinónimo da estupidez do ser humano. De como ele se deixa apoderar por causas que considera serem causas de um colectivo. Colectivo que encontra noutro colectivo o inimigo a abater. Causas em nome de colectivos que submergem a voz dos indivíduos. São as vítimas necessárias dessas causas imbecis, do aprisionamento do indivíduo perante o devir forçado do colectivo onde se convencionou o indivíduo pertencer. Enquanto a pessoa continuar a ser membro necessário da sociedade, esperamos que as guerras continuem a dizimar o mundo. É o fado da natureza humana.

Honestidade – O que mais falta faz no debate de ideias. A honestidade intelectual ausenta-se, levando os oponentes a expedientes que são alçapões para o adversário. Que riposta na mesma moeda. Uma discussão de ideias já há muito que deixou de ser uma “boa discussão”. O debate é instrumentalizado na ânsia de derrotar o oponente. É um terreno em que tudo vale para fazer vingar as teses contra as do adversário. Incluindo a vulgarização do oponente. A discussão é desviada para o acessório. A substância fica perdida nas minudências regurgitadas pela desonestidade intelectual. Nivelamento por baixo, é a consequência óbvia.

Igreja – Continua longe dos tempos modernos, presa aos arcaísmos das concepções dogmáticas do passado. Anacrónica, insiste em desempenhar o papel de consciência da humanidade. Para sentenciar comportamentos pessoais, dirimindo entre o que é “moralmente” aceitável e o que deve ser banido. Presa a uma retórica paradoxal: uma igreja dos pobres que é imensamente rica. A melhor ilustração de quem diz: “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”.

Jogo – É o que se adivinha de mais uma campanha eleitoral. Inverdades, promessas vãs, um apelo à memória curta do eleitorado. Políticos que palmilham o terreno, desdobrando-se em sorrisos de orelha a orelha, distribuindo apertos de mão, beijinhos e bandeirinhas a um povo que gosta de ser enganado. A um povo que acha que jogando o jogo de acordo com as regras que eles, políticos, estabelecem, está a ser actor principal na democracia em que pensa viver. Uma farsa, apenas uma farsa. Captado o voto, a democracia reencontra-se com a sua verdadeira essência contemporânea: ignorar os governados.

Leonor – (que protesta enquanto escrevo estas linhas…) Que mais poderia ser?!

Maremoto – (E não “marmoto”, como muitos jornalistas insistem em escrever e dizer…) Que me lembre, esta foi a manifestação da natureza mais devastadora que testemunhei através das lentes alheias. Com efeitos que ainda estão a ser contabilizados, a cada dia que passa. Diz-se que a natureza foi assassina, na destruição que espalhou pelo sul da Ásia. Nas esquinas do destino, ela acabou por ser contemporizadora: quantas mais pessoas não teriam sucumbido se o maremoto tivesse acontecido durante o sono geral?

Niilismo – Continua a ser uma deriva necessária, forma metódica de olhar o mundo em redor. Exteriorização da insatisfação, penoso exercício com frutuosa produção (pelo menos em quantidade…). A teimosia em ver na deriva niilista uma desconstrução do mundo que é, em si, um contributo para que as coisas possam ser diferentes. Não é apenas destruir por destruir, pelo gosto de destruir. É desconstruir para terraplenar o terreno para uma edificação diferente – ainda que de momento não consiga tipificar essa construção…

Oxalá – 2005 seja aquilo que as pessoas queiram que ele seja. Sem os desejos inócuos do género “paz no mundo” (irrealizável) e “saúde para todos” (os hospitais poderiam fechar, o que é impensável).

País, de Portugal – Portugal desgraçado, sorte inditosa. Crise, sempre crise. Crise de onde nunca conseguimos sair. Crise de confiança, descrença nas potencialidades que temos. Desgovernados por uma casta de inúteis, que se agarra à tábua de salvação da política por mais nada saber fazer na vida. P, também de primeiro-ministro, também de Pedro Santana Lopes. Num ápice, do deslumbramento ao abismo: do zénite de uma carreira política, com o menino herdado nos braços face à deserção de José Barroso; ao tapete tirado debaixo dos pés por um presidente da república que deixou de ser compreensivo. Outro exemplo de nivelamento por baixo.

Qualidade – Quando chegará o tempo em que nos convencemos que a qualidade deve ter precedência sobre a quantidade? Para não vivermos afogueados pelo tempo que passa, pelos balanços em que ajuizamos o muito que ficou por fazer, em vez de darmos valor ao que fizemos, à arte do que foi feito. Como o tempo passa célere, somos educados a definir objectivos que se sucedem a uma velocidade vertiginosa. O tempo anda descompassado da vida, com nefastos efeitos para a qualidade da vida que temos.

Rir – Única solução. Não perder tempo com o estado calamitoso do mundo, do país. É perda de tempo e é o mapa óbvio para a infelicidade, para o mal-estar interior. A solução é libertar o riso quando antes a reacção espontânea seria abanar a cabeça em sinal de incredulidade. Deixar vir ao de cima o cinismo, a resposta adequada à indisfarçável falta de qualidade dos que se acham decisores. Cinismo como complemento do cepticismo, ou apenas cinismo como atenuante do cepticismo? Dúvida ainda metódica.

Sporting – Ainda estou para perceber: a necessidade de saneamento financeiro, depois de décadas de viver acima das posses (maleita de todo o futebol nacional) vinga como expoente da transição para um modelo de gestão racional; mas as vitórias ficam adiadas. Até quando? Ainda estou para perceber se o esforço de racionalização vai trazer no futuro alguma grandeza, ou se é o reconhecimento de que o meu clube é a da segunda divisão europeia. Entretanto, um presidente desbocado, preso aos compagnons de route socialistas (com o que isso implica de falta de credibilidade), pedrada no charco – é certo – mas usando as armas erradas: insistindo na intervenção do poder político para sacudir a manta nauseabunda do futebol português.

Tabaco – Diria, antitabagismo primário. Mais actos para um combate cego contra os direitos individuais. Proibições em catadupa são anunciadas, outras ficam prometidas. Com a agravante do precedente que se abre: hoje os tabagistas, amanhã quem será perseguido nesta cruzada moralista?

União Europeia – ano marcante: um alargamento sem precedentes (passámos de quinze para vinte e cinco, acolhendo oito países de leste que souberam libertar-se das garras do comunismo); uma Constituição aprovada, cheia de defeitos, é certo, mas uma Constituição que garante a limitação dos poderes contra os direitos dos cidadãos. Só por isso, um contributo inestimável da União Europeia para a liberdade individual. A mesma União que é o garante de que as asneiras domésticas vejam os seus efeitos atenuados. Os abalos telúricos da incompetência política caseira são amortecidos pelas decisões com impacto tomadas pela União Europeia. Para bem dos nossos males.

Vitórias – Pessoais, algumas. 2004 é um ano para recordar para todo o sempre: o nascimento da primeira filha é motivo suficiente para que um ano seja uma recompensa pessoal incomensurável. No mesmo mês em que o doutoramento foi uma meta cumprida. Motivos de satisfação num ano ímpar.

Xico-esperto – Continua a ser o homem de sucesso neste país feito de improvisos e de expedientes. Nos negócios, na escola, na política, em todos os domínios. Vinga quem se mexe, quem usa estratagemas que o colocam a frente dos demais. Não quem tem valor. O Xico-esperto é a imagem nacional da mediocridade latente. Que tem efeitos acumulados: perante a dificuldade em vencer o “xico-espertismo”, as pessoas são levadas a embarcar nas regras do jogo. No rescaldo, um país inoperante. (Ou de como fui, eu mesmo, Xico-esperto para encontrar alguma coisa que dizer com a letra X…)

Zaratustra – “Assim falava Zaratustra”, obra-prima de Nitzsche a que regresso de vez em quando para tentar compreender o fluir do mundo. A mais de dois séculos de distância, ainda o espelho fiel do dos comportamentos humanos que tendem para a auto-flagelação. A compreensão de que nascemos para fugir da felicidade. Como se tivéssemos medo dela, embrenhados numa estúpida irracionalidade que nos atira para uma escala inferior à de outros animais ditos…irracionais.

30.12.04

Quem precisa de heróis?

Outra interrogação anda de braço dado com esta: porque temos necessidade de projectar a nossa existência em heróis? É um comportamento habitual: ver noutro aquilo que gostaríamos de ser, não fossem as nossas limitações um óbice ao estrelato. Daí que se endeusem figuras postiças, deuses com pés de barro que escondem a vacuidade absoluta. O que conta, para quem vive agarrado à necessidade de se projectar em heróis, é fazer de conta que a sua vida mundana e corriqueira devia ser a vida levada por aquela pessoa em quem é depositada uma admiração sem fim.

Para muitos haverá confusão entre admirar alguém pelas suas qualidades intrínsecas e endeusá-lo como se fosse uma entidade divina, imaculada de vícios. Quando olho em redor e vejo pessoas a dizerem que fulano é o seu herói na literatura, ou que beltrano é o guru espiritual que seguem com uma devoção cega, vejo pessoas que precisam de encontrar fora de si um objecto de admiração que, num passo, chega ao estatuto de heroicidade. Isto causa-me alguma perplexidade. Não sei se é por nunca ter tido heróis – nem mesmo na adolescência, quando os verdes anos estendem a passadeira a heróis efémeros – mas fico num beco sem saída quando tento perceber porque as pessoas procuram fora de si os heróis que não conseguem ser. Sei que o paradigma do anti-herói resvala para um perigoso extremo de narcisismo. Talvez este seja um dos (poucos) domínios de vida em que a virtude reside no meio.

Há um espaço enorme: entre o desprendimento de si mesmo que leva a projectar a frustrada existência num herói; e a recusa em admirar quem quer que seja para além da sua própria existência, num assomo vertiginoso de narcisismo. Há um espaço enorme por preencher, mas é um local vasto onde a posição mais racional tem a sua residência. Nem endeusar heróis, nem cair na tentação de desdenhar todos os outros, de os ver como criaturas inferiores, incapazes de chegar aos calcanhares de quem se vangloria estar tão acima da mediania. Para quem sente a necessidade de se mirar num herói, os que renegam o dogma da heroicidade alheia são catalogados como narcisistas incorrigíveis. Quem atesta deste modo está a recusar ver o amplo terreno que vai de um extremo ao outro.

Há muitas maneiras de construir heróis. Há heróis que permanecem para sempre, numa fidelidade impressionante que se confunde com a perda de auto-estima, com a abdicação de um espírito crítico. Há heróis de hoje que o deixam de ser amanhã, com o fluir dos humores e dos comportamentos próprio de quem se ausenta da estabilidade emocional. Há os heróis que o são sem que sejam assumidos nessa condição. Há os heróis formulados num manto de incoerência: por aqueles que são ásperos críticos da dependência alheia de que a religiosidade é tributária, mas depois endeusam figuras que corporizam os seus códigos de conduta. Em todas as formas possíveis de projectar heróis, há um desprendimento do eu que tenta imaginar a sua ambicionada existência num alter-ego que não conseguiu ser. Endeusar heróis é uma forma de prolongar a dependência do eu em relação a outrem, afinal um estigma que persegue o indivíduo desde os primórdios.

Dir-me-ão que admirar as qualidades de outrem é um acto de humildade. É reconhecer as qualidades acima da média que elevam alguém ao estrelato. E que a recusa da heroicidade arrepia caminho para o ensimesmamento, para uma voragem egoísta que impede de ver as qualidades inatas dos outros. Um acto de vaidade que ofusca as qualidades superiores dos outros. Aceito o diagnóstico. Ele coincide com o extremo do narcisismo. Já não consigo perceber porque motivo a admiração acaba por se confundir com a vassalagem prestada a um herói. Alguns não usam a palavra, talvez por pudor, por perceberem que a palavra em si é excessiva. Outros, mais desassombrados, têm a frontalidade de se reverem em heróis – e utilizam a palavra sem receio.

O que me leva à perplexidade é isto: tratar alguém por herói é afirmar que estamos na presença de alguém acima de qualquer suspeita. Alguém que não carrega consigo o fardo dos defeitos tão próprios da espécie humana. Um herói acima da condição humana, afinal um não-humano. É isto que não consigo compreender: a necessidade de encontrar heróis, que projecta a existência ambicionada numa vida isenta de defeitos. Será a negação do ser humano na sua melhor qualidade: a humildade para reconhecer as suas limitações.

Por isso é que me recuso a ver em qualquer ser humano um herói. A melhor homenagem que posso prestar a qualquer pessoa é recusar-lhe o estatuto de herói. Sob pena de o estar a desviar da sua condição humana.

29.12.04

A terrível natureza

Detenho-me por uns momentos nas macabras imagens que não param de chegar desde as longínquas terras afectadas pelo maremoto de anteontem. Fico aturdido com a sucessão de imagens de destruição, com o amontoado de corpos que jazem depois de tragados pelas águas revoltas, com os relatos sofridos de quem teve a sorte de escapar com vida à tragédia. As televisões vão passando imagens captadas por vídeo-amadores: retratam a onda assassina que irrompeu terra dentro, numa fúria avassaladora que não teve contemplação com vidas humanas e o que estava construído.

Vistos de cima, parece que estes locais foram devastados por uma bomba mortífera que nada deixou de pé: edifícios esventrados, árvores de porte arrancadas pela raiz como se fossem brinquedos amovíveis, automóveis empilhados numa estranha coreografia de estacionamento desordenado; e, o mais doloroso, os corpos que se perfilam lado a lado, ora ensacados e prontos para a sepultura, ora ainda a céu aberto, numa ordenação caótica. Uma macabra elegia à terrífica natureza que espalhou, com duas ondas carrascas, um manto pérfido de morte e destruição.

O número de vítimas não pára de crescer. Duzentos, mil, cinco mil, vinte mil, cinquenta mil mortos. Hoje de manhã, a informação de que pode ir além de cem mil mortos. A horrível contabilidade aumenta numa dimensão dantesca. Cresce numa proporção geométrica, como se a cada dia que passa a escalada eleve a bitola para além do imaginável.

Vistas as imagens, imaginados os momentos de aflição indescritível, diria que a natureza se zangou com a humanidade e quis mostrar toda a sua fantástica força. Comprimida num colete-de-forças, soltou-se e, num arremedo de raiva, soprou com uma violência inaudita a sua força explosiva. O tremor de terra semeou as mortíferas ondas de choque que percorreram o Índico e só pararam quando encontraram um leito de morte para repousar. A violência dos elementos teve a sua acalmia quando encontrou terreno para ceifar vidas e destruir a obra laboriosamente construída pelos humanos. Só então esta onda assassina se apaziguou da sua raiva interior, escolhendo os milhares e milhares de vítimas como réus necessários da sua cólera.

Aprendemos que a vida é feita de contrastes. Que vamos de um extremo ao outro num instante, com um simples estalar dos dedos. Esta tragédia é o espelho deste ensinamento. Locais que eram conhecidos por estarem próximos do éden terrestre estão agora mergulhados no caos, devastados, transformados num cemitério a céu aberto. O outrora paradigma do paraíso é hoje a imagem acabada do que pode ser o holocausto plantado em poucos minutos. A natureza mostrou toda a sua força incontida. O desrespeito por tempo acumulado de obra feita, de tanto suor derramado, que num ápice é varrida do mapa por uma onda alterosa, violência personificada numa força natural. Num instante, a natureza transformou o suor humano acumulado em anos de labor no sangue derramado que tolheu vidas numa dança macabra e aleatória.

O descanso de inocentes que repousavam nas praias idílicas; as artes de uma população sacrificada por provações; as famílias destruídas, como se todo um passado deixasse de fazer sentido – tudo a onda assassina varreu, impiedosa, na sua vingança indiscriminada contra quem teve a inditosa sorte de estar no local errado no momento errado. Natureza cega, insensível, bolsa de forças incontroláveis, saciada com o sacrifício de vidas humanas. Uma natureza terrífica, expoente máximo do bom e do mau: a mesma natureza que foi pródiga em doar estes locais com uma aura paradisíaca quis, arrependida, tirar esse dom com as ondas gigantescas e mortíferas que semearam um mar de destruição, um odor tétrico de morte.

28.12.04

O mapa do desamor Posted by Hello

De repente, sem aviso, o olhar cruza-se com uma inscrição numa parede antes desnudada. Alguém, desnorteado pela adversidade do desamor, lançou o grito de alerta. O sonho do amor deixou de ser possível. Temporário ou definitivo, o sonho deu lugar ao deserto interior. Desmembrada pela decepção, torturada pela dor, aquela pessoa protestou o incómodo que a corrói por dentro. Seria homem, seria mulher? A única resposta está em alguém que se deixou invadir pela desistência de lutar.

Já nem sequer sonhar. Tamanha é a dor cortante que nem sequer há lugar ao sonho. Imagino a pessoa, atormentada pelos caminhos ínvios do amor, acorrentada à não sorte de não conseguir amar. A dor que a paralisa, não a deixa atingir o patamar do sonho. Diria que vegeta, flutua na matéria incandescente dos sonhos que se esfumam com o tempo que não traz o amor.

Adivinho esta pessoa, amordaçada pelos murmúrios que deixou de proferir. Incapaz de pronunciar as palavras que dantes acreditava serem a chave para o bem-estar ausente. Afogueada pelas curvas sinuosas de um destino desavindo, descrente na profilaxia do sonho. Sonho feito estádio anterior ao amor, como se um sonho fosse o prenúncio do amor tão ansiado. Os sonhos que se desfazem, tal como se esta pessoa tentasse agarrar o vento entre os dedos. Dos sonhos desfeitos ao estigma do amor. Melhor, do desamor, do amor não emoldurado, do amor perdido na encruzilhada do tempo.

Há aqui uma ternura que se ausentou. Um paradoxo: alguém que se tenta reconciliar com a ternura de que tanto precisa, mas que dela se afasta para não ser torturado pelos descaminhos do amor. Ou pelos caminhos do desamor, que no caso vem dar ao mesmo. Alguém afogado na mágoa de se saber só, irremediavelmente preso a uma vida de solidão por incapacidade de ser amado, por sentir que o amor lhe está vedado. Fora de si verá uma barreira tão alta que não consegue transpor. A vontade de dar o seu amor esbarra no desnorte de não encontrar quem o queira receber.

A amargura do desencontro traz a urgência de gritar, com a dor bem aberta de um coração em ferida, que nem sequer o sonho quer acolher. Para não se deixar invadir pela doce, mas ilusória, esperança de que o sonho seja tocável pela pele sedosa dos seus dedos. Os sucessivos desencontros com o passado não deixam lugar a dúvidas. Cansada de sofrer, incapaz de tolerar a incompreensão alheia, desmotivada para continuar a oferecer o melhor de si, desistiu. Demitiu-se do amor, demitiu-se do sonho que dedilha o amor.

Do alto da sua varanda altiva, o acto de ensimesmar. Asceta de si mesma, refugia-se na fortaleza erguida para escapar dos suplícios do sonho. Será uma escada íngreme para cerrar as portas ao amor que o caustica. Será o caminho necessário para se fazer forte, entender que o amor não foi o mote para uma vida adocicada. Antes a causa para tanta decepção, tanto afogueamento doloroso. Compreenderá então que o amor é um acto de desprendimento de si mesma.

O sonho que repudia é o segundo acto deste afastamento. É rejeitar uma vida mergulhada na ilusão de que algum dia tem encontro marcado com o amor que lhe trouxe tanto desengano. Esperar que algum dia a névoa se desfaça para contemplar o tão esperado momento de ser velada pelo amor que andou arredio. Esta pessoa, céptica do amor, nada quer com o mapa dos sonhos. Sabedora de que o roteiro lhe tem trazido descompensações, regurgita todo o fel, deixa-se vencer pela anomia que lhe traz o recentramento na sua pessoa.

A angústia que invadiu esta pessoa desgostosa é arrepiante. Uma lição de vida para quem se esforça por encontrar grandes problemas em pequenos detalhes. Uma lição para quem se quer esquecer que o amor não se compadece com as desventuras da rotina. É a natureza humana que nos faz esquecer daqueles que se desenganaram do amor, por terem sentido a experiência das feridas profundas lavradas pelo desamor. Esta inscrição é uma lição de vida. Para valorizar o amor que, por vezes, parece andar escondido como o sol tapado por uma neblina persistente e incómoda.

27.12.04

Um poema pouco natalício

Andar no metro do Porto tem as suas compensações. Ou para fugir ao trânsito da cidade – quando a azáfama da quadra complica ainda mais o trânsito – ou para ler os poemas afixados em painéis nas carruagens. Já não andava de metro desde Junho. Perto do natal tive que ir à baixa da cidade e não hesitei: o metro seria a melhor solução. Só no regresso é que pude reparar no poema que enfeita algumas das paredes das carruagens. Um poema sobre os perus de natal.

Um poema escrito, decerto, por um jovem da onda undergound. Um poema pouco convencional, a fazer lembrar as rimas e ritmos do rap. Com um destinatário claro: a tenra idade, desde crianças a jovens, quando as convicções começam a borbulhar com toda a intensidade. O poema dirige-se ao receptor na segunda pessoa do singular. Quem o lê observa que está, enquanto leitor, a ser tratado por tu. Sendo a quadra natalícia o mote do poema, e sendo a empresa do metro detida pelo Estado – logo, o melhor leito para fazer repousar as tradições inquebrantáveis – seria de esperar uma ode às delícias que a ave proporciona por estes dias. Seria de esperar uma narrativa cheia de elogios aos sabores de um peru sabiamente recheado.

A surpresa não está apenas na escolha do peru como mote para o poema. A surpresa é ainda maior porque o poema traça um retrato pungente do sofrimento que aos perus está reservado durante os dias do natal. Um retrato sofrido, apelando à boa consciência dos jovens a quem o autor trata por tu. Assim excluindo os mais velhos, aqueles para quem a força das tradições é tão poderosa que os impede de ver, para além das suas papilas gustativas e da farta barriga, o sofrimento causado aos perus sacrificados durante o natal. Os jovens com quem o autor do poema quer nutrir um sentimento de familiaridade são levados a partilhar a dor sentida pelas aves cuja vida é ceifada para deleite egoísta de humanos que, com a abastança alimentar da quadra, estragam mais ainda a sua já débil saúde. A mensagem final: os jovens são convidados a deixar de comer peru.

Senti-me sensibilizado pelo poema. Não sei se o autor será vegetariano, usando a oportunidade que lhe foi dada para combater o consumo da carne que é mais típica da quadra natalícia. Não sei se será apenas uma consciência inquietada pelos requintes de malvadez que antecedem a degola do infeliz peru – a engorda à pressão, o tempero em vivo com a degustação forçada de quantidades generosas de vinho que devem ter um efeito devastador nos frágeis fígados das aves.

A parte final do poema não me era dirigida: peru é carne que não entra na minha boca. Mas fiquei tocado com o poema. Com a ousadia de inscrever este poema em carruagens frequentadas por uma turba ávida de se alambazar com as carnes temperadas do peru que fica a assar longas horas no lume brando do forno caseiro. Com a ruptura de costumes estabelecidos, dando uma perspectiva diferente daquela a que milhares de utentes do metro estão habituados por alturas do natal.

Desconfio que a intenção – se é que foi dar voz a alguém empenhado em denunciar as barbaridades que os perus passam para comprazimento dos comensais natalícios – não terá chegado longe. Ou porque a multidão que frequenta o metro não tem hábitos de leitura, não tendo motivação para cansar a vista num conjunto de palavras ordenadas em meia dúzia de estrofes (até porque os poetas, para esta gente, fazem parte de um grupo de lunáticos a quem não deve ser prestada atenção). Ou porque, para os poucos que ainda se deram ao trabalho de deslindar o poema, a mensagem terá passado ao lado. Não será a voz de protesto de um poeta que terá andado a fazer graffitis nas paredes da cidade que toca no âmago desta gente. Ler o poema terá sido já uma grande vitória dos promotores da iniciativa. Fazer chegar a mensagem ao destinatário é outra conversa.

Terá valido a pena a ousadia de cortar com os hábitos estabelecidos e publicar este poema andante, que dia após dia percorre as linhas do metro, se os “tus” a quem se destinava se arrepiarem com o tratamento bestial que os humanos dedicam aos perus de natal.

25.12.04

Brighton, Outubro 2004
British weather

(cliquar nas fotografias para as ver ampliadas) Posted by Hello
Pela alvorada sinto os vidros do quarto a estremecer. Rangem com a fúria do vento que vem batido com violência, soprando a brisa marítima para terra. A BBC informa que se esperam rajadas de quase 90 km/hora. Um cartão de visita das intempéries que hão-de instalar o Outono. O mar encapelado é o espelho da fúria do vento. Pelo mar dentro, o Pier é testemunha da inclemência dos elementos. Ele, mais do que ninguém, fica exposto às rajadas que espetam as vagas do mar nos seus pilares com estampido. Surpresa seria encontrar uma Inglaterra ensolarada.
Biblioteca Posted by Hello
Durante três meses (Outubro a Dezembro de 2000) foi esta a minha casa. Tinha uma colega que em brincadeira dizia que só faltava lá dormir para a biblioteca ser a minha casa. Refúgio da solidão, mas também necessidade de trabalhar a fundo, para aproveitar os três meses de investigação que me esperavam. Esta era a visão com que me encontrava sete dias por semana, logo pelas nove horas da manhã. Dia após dia, sem descanso, numa rotina que se instalou com a necessidade do engenho. Para meu bem-estar, a banca dos estudantes socialistas era raro aparecer. Fica aqui como uma nota de tolerância política (podia ter tirado a fotografia de outro ângulo…). Plus ça change, plus ça c’est la même chose. Por estranho que pareça, até acaba por ser um sinal de vitalidade.
Todos os dias Posted by Hello
A via-sacra percorrida todos os dias, o caminho para a biblioteca. Mais com chuva do que com sol, com as noites que caíam de súbito pouco depois das três horas da tarde em pleno Dezembro, a certa altura contava os passos que iam da estação ferroviária até à porta da biblioteca. Todos os centímetros palmilhados, como se fosse um mapa que conhecia como a palma das minhas mãos. Nos escassos dias em que o sol teimava romper o tecto de nuvens, o verde da relva refulgia e dava uma nota de alegria. Não sei se era saudade do sol mediterrânico, se a relva aqui tem outra tonalidade – mas nesses raros dias soalheiros o verde da relva parecia-me diferente, mais vivo e tonificante.
Entrada da universidade Posted by Hello
A universidade está localizada numa paisagem atractiva. Acredito que terá sido preocupação dos arquitectos dar uma envolvente natural que fosse harmoniosa com os edifícios construídos. Claro que a paisagem não se inventa. O trunfo está em saber enquadrar o dedo humano que dá a forma aos edifícios com a envolvente natural, sem a desfigurar. Os relvados aprazíveis, as árvores de porte que conservam vegetação farfalhuda mesmo no pino do Outono, quando o Inverno começa a bater à porta, são os sinais deste feliz casamento entre a natureza e a intervenção humana. À saída da estação do metro, depois de ultrapassado o túnel debaixo da auto-estrada, uma rampa empinada dá acesso a este local – a entrada da universidade. O local onde aos fins-de-semana, sem a azáfama de milhares de estudantes que irrompiam vindos do comboio, via os esquilos em brincadeiras ternurentas, num sobe e desce vertiginoso.
Pontos cardeaisPosted by Hello
Mesmo no centro de Brighton, um dos ex-libris da cidade. A torre encimada por uma cúpula de ouro marca o reconhecimento da cidade a sucessivas levas de monarcas que têm reinado as ilhas (o habitual tributo que enfeuda cidadãos a governantes). Este é um ponto cardeal da cidade, onde desaguam as ruas e avenidas vindas de todos os quadrantes. Aqui convergem – ou daqui divergem, cada uma no seu sentido, em busca do sentido que lhes dá a função para que foram criadas. Na sua face virada a sul, a torre parece indicar aos viajantes que chegam de Londres que o mar é sempre em frente, a descer.
Raios de sol que renovam almas salpicadas pelo gotejar do marPosted by Hello
Há muitos aspectos curiosos no britânico típico. Um é a forma espontânea como se entregam aos primeiros raios de sol, após um escurecido tempo em que a chuva, as nuvens negras e o vento se encarregaram de trazer a vocação sombria das ilhas. Depois do aviso de tempestade que azedou a manhã, pelo início da tarde tímidos raios de sol queriam fugir da tutela forçada das nuvens cor de chumbo que haviam tingido o céu. O vento ainda soprava forte – menos do que de manhã. As ondas do mar eram o reflexo da alteração vinda do Atlântico profundo. O Pier vigiava, atento, os passeantes que se repousavam nos calhaus da praia, refrescando-se com a brisa marítima que entrava à força pelas narinas. Vigiava-os, para que não fossem tragados pelas ondas alteradas do mar.
Pier em ruinas, Inverno que se adivinhaPosted by Hello
Do mesmo local, olhando para o lado contrário (poente). O Pier antigo, fechado há largos anos na sequência de um incêndio. E que há dois anos acabou por sucumbir, sem forças para resistir à violência do mar na sua terrífica aliança com os ventos que aqui chegam vindos do sul. As pessoas espalham-se pelo passeio marítimo. Adivinham que estes raios de sol que vieram interromper a borrasca são dos últimos antes que a escuridão das estações adversas se instale de vez. Passeiam-se lentamente, calcorreando o cimento com passos lânguidos, como se esperassem demorar o mau tempo que por aí vem. O casal bem apressoado parece olhar com nostalgia para o cartaz estival que festeja o Verão e a praia. O semi-corpo desnudado que olha com deleite para o mar prazenteiro contrasta com a atenção do casal. O Pier derrotado anuncia-se no mesmo destino reservado ao cartaz e ao que ele simbolizou – o Verão, a luz diurna que se demorava por longas horas, os corpos sem o peso das roupas que são chamadas a agasalhar os desagradáveis e húmidos ventos que chegam a Brighton vindos dos lados do mar. Vêm dar lugar a um outro quadro, de refúgio, de recatamento nas lareiras que escondem as marcas do Inverno.

24.12.04

Um conto de natal

(Ou um natal como “deve ser”)

Lá fora, a neve cai. Os flocos pousam levemente, preenchem as camadas sucessivas de neve que se acumulam no beiral da janela. As copas das árvores vão perdendo a cor verde, revestindo-se da alvura da neve que pesa sobre as suas folhas. A noite vai caindo.

Dentro da casa, a azáfama natalícia invadiu o espaço. Todos, à sua maneira, dão um contributo para a noite que se avizinha. Na cozinha, os preparativos gastronómicos soltam uma mistura de odores que invade a casa. São os cheiros que se associam à quadra: as rabanadas, os sonhos, o odor da canela fervida com o limão nos preparativos para os formigos. Outros encarregam-se da mesa. Decorada a preceito, porque esta é uma noite única no ano. Há que esmerar nos pormenores, usando ornamentos alusivos ao natal. Os guardanapos trazem um tom garrido à mesa: são em tom avermelhado, com motivos natalícios (pais natais que se fazem transportar por renas). Inspecciona-se a árvore de natal, para ver se não há nenhuma bola partida pelas garras do gato atrevido, se todas as luzes estão funcionais.

Na sala, a lareira é vigiada. O frio anunciado pela neve não pode tomar conta da casa. Os pedaços de madeira, cortados ainda de manhã, ainda a neve não tinha chegado, são resguardados junto à lareira. Estão prontos a serem consumidos pelo fogo, iluminando com as suas labaredas o natal da família. A tenaz que mexe e remexe os nacos de madeira é manipulada pelo avô. Ninguém como ele sabe fazer uma boa lareira. As chamas vão crepitando, as cinzas incandescentes fazem-se notar no chão da fogueira. O odor a fumo vai-se misturando com os cheiros que vêm da cozinha. Conferem uma atmosfera única, consumam o quadro que se confunde com o natal que se sucede ano atrás de ano.

As pessoas vão chegando. Carregadas de sacos, que amontoam as prendas que hão-de ser trocadas quando a noite já for alta. Guardam-se os sacos num lugar esconso, resguardados da curiosidade das crianças. Na cozinha, os últimos preparativos para o jantar. Na sala, os homens põem a conversa em dia. Os temas controversos ficam, por um dia, à porta da rua. Todos convertem os espíritos para a concórdia natalícia. As crianças assenhoreiam-se da algazarra. Estão excitadas, a contar as horas que faltam para a visita do pai natal. A contagem decrescente dos dias chegara à mágica folha do calendário: “24”. Nunca como noutros dias é tão reconfortante rasgar a folha do calendário do dia que se esvaiu antes do sono.

Já estão todos em casa. Da cozinha vêm instruções para as pessoas se sentarem à mesa. O apetite voraz dos comensais mais velhos contrasta com o desejo das crianças que o tempo da refeição não se eternize – não vá o pai natal fazer um desvio e retardar a sua visita. A impaciência começa a gotejar à medida que os mais velhos prolongam o banquetear das iguarias da época, que desfilam umas atrás das outras sem cessar. Só quando as barrigas começam a ficar fartas, os ouvidos dos mais velhos despertam para as preces dos mais novos.

Eles não se cansam de perguntar se o pai natal está longe. Um dos mais velhos, com a mania das tecnologias, simula uma conversa com o pai natal através do telemóvel. Sentencia: “dez minutos, o pai natal manda dizer que está aqui em dez minutos”. É a senha para um dos mais velhos se ir vestir de pai natal, carregando, com a ajuda de uns acólitos de ocasião, os fartos sacos de prendas. O barbudo de vermelho vestido descarrega os sacos e deseja bom natal a todos, despedindo-se até ao ano que vem. Lamenta não poder ficar, mas a noite é trabalhosa e outras casas merecem a sua visita.

É o momento mítico da noite. Os mais novos esbugalham os olhos de cada vez que o seu nome é anunciado. Desembrulham as prendas com avidez. Reagem com excitação a algumas das prendas, com indiferença às mais simbólicas. Deixam de lado as que menos lhes interessam e concentram-se nas mais vistosas. Os mais velhos deliciam-se com a exultação delas crianças. Ao fim de meia hora, a excitação começa a ser invadida pelo cansaço. Foi muita a espera, e muitas as emoções que levaram os mais novos à exaustão. Começam a espalhar-se pela sala, vencidos pelo sono. É chegado o momento de arrumar as coisas na cozinha. Ficam empilhadas para o dia seguinte, porque a canseira também derrotou os mais velhos.

As despedidas. Cada um vai para o seu quarto, outros agasalham-se porque têm de regressar às suas casas calcorreando as estradas geladas pela neve que entretanto fez uma trégua. Mais um natal, mais votos de que no ano seguinte todos estejam reunidos à volta da mesa para celebrar a festa da família. O habitual. A modorra que se vai instalando, ano após ano, mas que é sempre festejada e leva os mais cépticos a arranjar forças, lá no fundo, para ver no natal um motivo de alegria.

23.12.04

O natal contado às criancinhas (a versão capitalista)

A perene tarefa de ser pai: educar os filhos no espírito da quadra natalícia. Um dilema que surge. Entre as convicções pessoais, dominadas por uma inexplicável tristeza que me invade na quadra, e os outros 50% da sociedade familiar que se querem manter arreigados ao espírito tradicional do natal. No fio do arame, entre a desmistificação do natal como nos é vendido, e a necessidade de sermos elos, pequenos elos, perpetuadores da tradição natalícia. Imagino as consequências das opções. Levar por diante a vontade pessoal, sabendo que os filhos estarão num mundo estranho quando forem postos em contacto com outras crianças, elas tributárias do “natal-como-deve-ser”. Ou sucumbir à maré, deixar que os filhos se enredem no mundo faz de conta que tem a sua expressão máxima no natal, no conforto de não os votar ao ostracismo social.

Depois, num esforço interior, tentar contar às crianças o que é o natal (modalidade pagã, apenas). Levá-las a acreditar no famigerado pai natal, essa pretensa invenção da Coca-Cola. O velho barbudo, que mantém residência algures na distante Lapónia (não esquecer de apontar a dedo a localização no mapa), explicar porque traja de vermelho e enverga farfalhuda barba branca sem que ambos os sinais um resquício do fantasmagórico marxismo…

Ensinar-lhes que o pai natal viaja de trenó, movido a energia de rena milagrosa – umas renas que só existem perto do pólo norte, que se distinguem na fauna animal por serem os únicos quadrúpedes que conseguem voar sem terem asas. É preciso explicar-lhes o significado do dom da ubiquidade. Uma derivação metafísica impõe-se: fazer-lhes ver que as pessoas só podem estar num sítio de cada vez, que a nossa matéria não se pode pulverizar em múltiplas partículas para estarmos em muitos sítios ao mesmo tempo; o pai natal é diferente. Que, à semelhança de alguém que se chama deus, consegue estar presente em todo o lado ao mesmo tempo, milagre cósmico que faz chegar as prendas ansiadas a todos os lares em função da abundância material. Ou, numa versão adaptada ao mundo moderno, notar que ubíquo só o tal deus, que o pai natal é uma entidade plural, uma espécie franchisada com representantes em todos os países, em todas as cidades, em todas as vilas e aldeias.

Na necessária socialização das crianças em infantários e escolas, mais difícil se torna escapar à questão do espírito natalício. Entre o politicamente correcto e os malefícios do consumismo globalizado, há todo um vasto oceano de diferenças de difícil harmonização. Por mais que vingue a convicção que o verdadeiro espírito natalício é o que cultiva sentimentos e não a posse de coisas, temo que este exercício seja remar contra uma maré poderosa. Um pai não pode contra um exército de pequenas crianças que convivem com os filhos. Nada pode contra as ondas alterosas que inculcam nas crianças a convicção de que natal é o momento em que são invadidas por um enxurrada de prendas.

É um lugar comum censurar o espírito natalício subvertido pela febre consumista. As crianças são levadas a interpretar o natal pelo termómetro das prendas. Quanto mais recebem, mais os ofertantes delas gostam. O fenómeno vem de trás e cultiva o efeito bola de neve. As crianças de hoje foram habituadas no fervor consumista, que tem o seu expoente máximo no natal. Quando as crianças de hoje se transformam nos pais de amanhã, há a transmissão espontânea do comportamento materialista.

Diria que é genético. Mas não diria que é uma subversão do espírito natalício, ou sequer a materialização das relações humanas, como alguns profetas da desgraça sugerem. Porque, no fundo, receber é a contrapartida de dar. Há algo de pedagógico nisto. As crianças devem ser educadas na arte de receber. E de preferência, receber com generosidade. A pedagogia paternal divide-se em dois actos: ser generoso, mas fazer ver que é a generosidade possível dentro das condições materiais que existem. Este é o espírito que fermenta nas crianças, adultos de amanhã, a predisposição para a troca, para serem elas mesmas generosas quando chegar o seu momento de oferecerem. É o natal ao serviço do capitalismo – e, como sempre, o capitalismo ao serviço do bem-estar da humanidade.

A hipocrisia que desdenha do natal consumista deve ser denunciada. Tenta educar as crianças no espírito descomprometido do natal, inculcando que é agora, mais do que nunca, que os laços familiares se devem estreitar, que as pessoas devem ser atreitas a fazer o bem. Suprema hipocrisia. Como se isto apenas fosse emergente no natal, e se pudesse esquecer durante os restantes dias do ano.

22.12.04

A eutanásia

Nos últimos tempos tem-se reavivado o debate acerca da eutanásia. Em alguns países os argumentos favoráveis e contrários à eutanásia voltam a ser contrastados. Nesses países discute-se a possibilidade de legalizar a eutanásia em condições limitadas, ainda que sob o manto da legalidade se escape à palavra tão causticada ao longo dos tempos. Em sua vez surge a expressão “assistência na morte”.

Este é um daqueles domínios que ilustra como vivemos enfeudados à ideia de que a vida individual é tutelada por uma qualquer entidade superior ao eu. Seja a deus, seja ao Estado. Somos senhores da nossa vida até a um limite em que a disposição da vida individual choca com os valores estabelecidos na sociedade. É esta a linha de raciocínio dos opositores à eutanásia. Trata-se de uma decisão delicada: um doente em estado terminal deseja pôr fim à sua vida, necessitando de auxílio médico para alcançar o objectivo. No fundo, alguém é chamado a colocar um ponto final na vida de outrem. O que pode levar a um conflito de consciência para quem é chamado a desligar o doente do ténue fio que ainda o mantém agarrado a uma vida periclitante. Mais grave, este acto em que alguém tira a vida a outra pessoa – mesmo que com o consentimento desta, ou de seus familiares – é criminalmente censurável.

São conflitos que colocam em lados diferentes da barricada o doente que anseia por ver a sua vida terminada e a sociedade que zela pelos valores inculcados na maioria. Diz-se que o candidato à eutanásia não tem o direito a dispor da sua vida para dela se desligar, porque isso atenta contra o valor da vida, tão preservado pela sociedade. O argumento seria defensável, não fossem muitos dos países onde se ergue uma cortina de hostilidade contra a eutanásia os primeiros a espezinhar o valor da vida – sejam aqueles onde ainda existe a pena de morte (ou a prisão perpétua), sejam aqueles que não hesitam em atentar contra a vida alheia em nome de guerras duvidosas.

Fico perplexo como se defendem os valores que cimentam a propalada “consciência social”, deitando para trás das costas os interesses de quem quer terminar a sua vida por estar imerso num sofrimento físico e mental ímpar. É fácil exibir o pudor de quem se sente ofendido, ou pelo menos incomodado, quando alguém quer morrer por saber que não consegue viver para além da doença que o definha. É confortável, porque o sofrimento não passa pelo corpo destas pessoas. É fácil ser juiz do sofrimento alheio, estar pronto a lavrar sentenças que repudiam a tentativa de alguém pôr cobro ao sofrimento de viver acorrentado a uma doença que eterniza o momento em que há-de chegar a morte. Gostava de saber se mantinham a mesma opinião se fossem apanhados na armadilha de uma doença letal, traiçoeira, que os acorrentasse a uma vida vegetativa, cheia de sacrifício e indignidade. Gostava de saber se mesmo aí seriam contra a eutanásia.

Sei que os mais cautelosos invocam a necessidade de prever situações obscuras, em que o desejo da eutanásia se confunde com o perverso gosto de um médico terminar vidas alheias sem o consentimento destas pessoas. Como é difícil, noutros casos, obter o consentimento do doente – por não poder exprimir a sua vontade. Por cima de tudo isto estão valores mais elevados. Reconhecer o direito de dispor da própria vida, ainda que o limite se estique e passe a tocar aquilo que está convencionado ser terreno em que o direito individual invade os interesses da sociedade. Para que a pessoa não continue a agrilhoar os seus destinos a decisões que estão fora da sua esfera, como se a vida de cada um pertencesse a todos.

Ao que sei, aos católicos que têm a coragem de cometer suicídio não é reconhecido o direito de sepultura em cemitérios segundo os rituais da religião a que pertencem. Um dos dogmas do catolicismo é de que deus criou a vida, e só deus dela pode dispor. A vida há-de terminar quando deus assim decidir. Na sua bondade, deus deve preferir prolongar o martírio daqueles que já não têm esperança senão a de ver a sua vida findar. Um deus bom é aquele que não tem problemas em eternizar o sofrimento. Dirão os crentes, na sua placidez, que foi assim que deus quis.

Será que numa era de dessacralização temos uma entidade terrena que se substitui à entidade divina que se assenhoreou da vida humana? Podemos dessacralizar a vida em sociedade, mas os vícios de raciocínio estão tão enraizados que iremos continuar a encarar o problema da mesma forma. A eutanásia há-de persistir envolta num pecado: antes religioso, agora social. Mas a ideia de pecado há-de perdurar, nem que seja para alicerçar o poder daqueles que se apossam do Estado para exercer a sua vigilância pedagógica sobre todos nós. Ou de como deus se faz homem...

No rescaldo: um direito tão basilar como o de dispor da vida individual – em toda a sua latitude, abrangendo todos os actos que interessam à vida de cada indivíduo – há-de continuar a ser negado, para as consciências que se sentem ofendidas poderem repousar descansadamente todas as noites. Ignorando que, nesse mesmo momento, algumas pessoas vivem o tormento da condenação à morte sem saberem quando, eternizando um sofrimento que só elas sentem. Eis o altruísmo social em toda a sua magnitude!

21.12.04

Efémero

Uma meta ultrapassada. Um objectivo de vida que fica para trás (um, entre os que vão desfilando ao longo da vida). Anos de trabalho, canseiras, avanços e recuos, angústia ao sentir que tinha chegado a um ponto sem retorno. A passagem do tempo era boa conselheira: a paciência destruía os obstáculos, deixava mais cabos dobrados e mais etapas pela frente para vencer. Foram quatro anos que pareciam intermináveis. Até à etapa final, a comunicação de que o grau estava conferido.

O alívio. Doravante, a necessidade de desviar a atenção para outras coisas que trazem mais recompensas. Para algo que não me exponha perante as debilidades de um trabalho, quando suponho que as críticas partem da incompreensão. Saio da etapa final com a noção de que quero que isto signifique um ponto de viragem, não uma linha de continuidade.

Para muitos que andam na profissão, a meta ontem alcançada representa um ponto intermédio. É como se fosse o último degrau que leva a um patamar, sabendo que para cima há outros patamares que espreitam em jeito de desafio. Comigo a reacção é diferente. Sinto-me cansado da investigação. Este blog é o sinal vivo desse cansaço que já dura há algum tempo. Uma válvula de escape, a necessidade de buscar na escrita um refúgio para os caminhos enviesados da investigação, para a aridez que via fecundar à medida que ela avançava. Mesmo estando a pesquisar um tema do meu agrado, olhava para o resultado e sentia-o abstracto, desligado da realidade, um produto afastado do interesse comum. Pela primeira vez, concordei com as acusações de que a universidade vive de costas voltadas para o mundo real. Senti-o com a minha própria investigação!

Depois há o efémero. Ao ler a informação de que o grau estava atribuído, não senti uma irreprimível vontade de saltar da cadeira, de soltar um grito de contentamento. Estranhamente, fiquei trémulo. Apático, como se estivesse anestesiado pela boa nova que acabava de receber. O alívio sobrepôs-se ao contentamento. E se notei algum regozijo, esgotou-se ao fim de breves minutos. Estranha sensação. Receber a notícia esperada, pela qual tanto suor foi derramado, tantos sacrifícios foram feitos; mas recebê-la inerte de emoções, quase indiferente. A meta atingida, o objectivo por fim agarrado com ambas as mãos, e parece que ele deixou de fazer sentido. Sinto-me como se estivesse amordaçado pela ressaca de uma noite de álcool abundante: sem compreender o bem-estar da noite anterior, apenas sentido o mal-estar da ressaca torturante no dia seguinte.

Já não é a primeira vez que este estranho sentimento aflora. Também no passado a felicidade de outros projectos de vida se consumiu de forma instantânea. Não chegava a haver o momento para a libertação das emoções. O momento fugaz em que a notícia esperada era anunciada levava a descarregar a pressão acumulada. Esses grandes projectos de vida fazem mais sentido quando são levados durante os preparativos. Eles fazem mais sentido quando se vai desbravando o terreno que permite atingir o objectivo. Uma vez lá chegado, ele deixa de fazer o sentido que supunha que faria durante o período em que lutei contra mim mesmo para lá chegar. Instantes fugazes, regalias que se esgotam num precioso mas ténue momento. Depois fica todo o tempo do mundo por cumprir.

Já antes senti como ao chegar a uma destas metas significativas da vida ela parecia não ter o significado esperado. Talvez por saber que o objectivo estava consumado e que a sua comemoração interior não me preenchia. E, sobretudo, por perceber que atingida uma meta outras ficam por traçar para o futuro. Ou a vida deixa de ter sentido, remoendo a existência como se o vazio que preenche o horizonte fosse o grande obstáculo a ultrapassar. Depois de um projecto, outro se segue – ou o oxigénio da vida esgota-se com a vitória efémera de um projecto acabado.

Ainda me falta perceber se é nisto que se consome a essência da vida, ou se é apenas um caminho para andar distraído com o que menos interessa.

20.12.04

Rir sem parar: um relance sobre a paisagem política

Olho para o histórico dos textos do blog. Para minha satisfação, vejo que não escrevo sobre política há vários dias. E quero prometer a mim mesmo que depois deste texto quero um período de nojo, um luto necessário para bem da minha sanidade mental. Este exórdio é um manifesto do riso cínico que se instalou desde que o nível da paisagem política desceu para além do imaginável, depois do impensável engenheiro Guterres.

A coisa nem pode ser levada a sério. Sob pena do estertor da tristeza cobrir de cinzento um panorama que de si não é dado a receber de braços abertos as cores brilhantes do sol. Uns, lá para o norte da Europa, queixam-se das poucas horas de sol que têm. Chegam aqui ao sul e extasiam-se com o sol fantástico que faz desta uma terra climaticamente abençoada. Mas os nativos da terra soalheira insistem em disparar no próprio pé. Permanecem emudecidos, agrilhoados a um cinzentismo que ofusca o esplendor da luz solar que devia fazer de nós um povo mais risonho.

Ao contrário, reina a auto-comiseração colectiva. Há séculos que vivemos neste estado de torpor colectivo. Diria que é o devir nacional, o que nos separa de outros povos tão latinos como nós, mas tão diferentes na alegria de viver. Daí o fado e outras coisas que cultivam a beleza da dor humana. Daí que o panorama político tenha vindo numa trajectória descendente. De desgraça em desgraça, afunda-se a cova onde estamos. E a coisa promete não ficar por aqui, se forem confirmadas as sondagens.

É nestas alturas que vejo a União Europeia como a nossa salvadora. A desdita política doméstica pode trazer à superfície os episódios mais grotescos, as cenas mais lamentáveis. Portugal continua a rolar, não obstante. Porque as grandes decisões já não são tomadas em Lisboa, no Terreiro do Paço ou em qualquer outro local onde estejam albergados ministérios. Essas são as decisões tomadas em conjunto pelos países que fazem parte da União Europeia. É, de forma indirecta, a importação de políticos que um amigo meu sugeria como a única solução para o disparate nacional em que estamos mergulhados.

O panorama não é tão inditoso como parece. Diria tratar-se de uma tragicomédia. Sendo agridoce, há que saber separar os sabores e extrair a essência de cada uma das parcelas. Quanto à tragédia, melhor será não explorar o tema. É a sina: um povo sorumbático e descontente com o que somos, com o que construímos. Tragédia é a apetência para a mediocridade. É sermos coniventes com a exposição mediática de criaturas que, por não saberem fazer mais nada na vida, se entregam nos braços da política. O que diz muito de como vai a coisa política entre portas (versão ainda mais radical do messianismo do professor Cavaco; porque ele também lá esteve, da má imagem não se consegue livrar – com a excepção de que conseguiu fazer outras coisas úteis fora da política…).

Agora andamos com a pré-campanha. Martírio que há-de durar semanas a fio, com o chorrilho de disparates, com as promessas que em campanha nunca são vãs, mesmo que ao observador mais desatento elas o sejam, claras como a água. Ataques pessoais, manobras que iludem o eleitorado – vale de tudo um pouco. E dois figurões, candidatos ao mesmo cargo, digladiam-se num duelo de irmãos. Um quer-se manter agarrado à cadeira do poder, desfiando uma teatralização pródiga em actos de vitimização. O outro, ideias ocas, a mesma pose fabricada, qual pacotilha que embeleza produtos inanes, vai herdar o poder pela inépcia do irmão. Sem ideias que se vejam, rodeado pela chusma que faz do partido que lidera (nas sábias palavras de um venerando colega da universidade) a “nata da merda”.

Visto de cima, como se planasse sobre o território, o panorama parece pouco simpático. Ora o segredo é conseguir rir com os nossos males. Não é mero expediente, como se tentasse passar uma esponja, fazendo de conta que batemos no fundo (mas será desta que batemos no fundo?). É genuíno: é saber ser cínico e moldar a tristeza alheia como causa da boa disposição de quem se ri a bandeiras despregadas. A sério, nunca me ri tanto com a política nacional!

17.12.04

A nudez contra a utilização de peles de animais

Protestar está na ordem do dia. Contra a prepotência dos poderosos, a sociedade democrática conferiu uma arma de arremesso: o protesto, a manifestação, pacífica ou com laivos de violência. Protestam os sindicatos: querem um mundo cheio de direitos para os trabalhadores em contrapartida de uma ausência de deveres. Protestam os estudantes: querem um ensino que cultive o facilitismo. Protestam os agricultores: para que se mantenha a “segurança social” suportada por quem consome os seus produtos. Protestam os meios culturais: ávidos para sorver mais e mais recursos ao erário público, como se os contribuintes tivessem um dever categórico de subsidiar a produção cultural destinada a elites circunscritas. Protestam os abstencionistas: contra o marasmo, a reduzida qualidade dos actores do processo político.

Protestam activistas dos direitos dos animais: contra os abusos perpetrados em animais indefesos. Tenho que confessar que não sou atreito ao verbo fácil do protesto. Admito que é uma forma de exteriorizar a liberdade de expressão, trave mestra de uma sociedade que reconhece as liberdades individuais. Por razões estéticas, por razões ligadas ao individualismo que cultivo, não sou dado a alinhar em manifestações colectivas que afirmam um descontentamento. Quando o faço, restrinjo o protesto ao meu íntimo. É o que acontece com a tendência sistemática e militante para a abstenção eleitoral.

A excepção seria – se me fosse pedido um contributo – na defesa dos direitos dos animais. Sei que estaria ao lado de sectores que não atraem a minha simpatia – os ecologistas inquinados por uma forma exacerbada de defender as suas causas. Mais importante do que as más companhias seria a nobreza da causa. Vêm de há muito as manifestações que reclamam a proibição do comércio de peles de animais. Utilizam a nudez como arma contra a perfídia de matar animais pelo prazer estético de umas madames endinheiradas.

Há dias, novas manifestações algures na Europa. Apenas vi de relance as imagens: umas modelos com parcas vestimentas, só a tapar o essencial, despertaram a atenção. Desatento – ou, para ser fiel à verdade, concentrado na nudez que desfilava no ecrã – só ao fim de alguns momentos percebei o motivo da manifestação. Elas tiraram a roupa para chamar a atenção da estupidez que é sacrificar a vida de animais sem defesa, apenas para comprazimento pessoal de senhoras que se pavoneiam nos salões da alta sociedade trajando os seus casacos de peles.

Em tempos vi um documentário que explicava como, nas terras inóspitas e geladas do norte do Canadá, caçadores matavam a sangue frio as crias de focas para lhes subtraírem a pele alva. Na retina ficaram os gritos lancinantes das mães foca, no desespero de nada poderem fazer para salvar a vida da cria sacrificada. Testemunhei, com lividez, a frieza atroz dos caçadores, maquinalmente espetando o arpão. Os carrascos de criaturas inocentes que pagam com o preço da sua existência a necessidade de acalentar o ego narcisista de senhoras abastadas.

No final do documentário, o vazio e a revolta apoderaram-se de mim. É por isso que compreendo as manifestações de quem ergue a voz contra a ignomínia de tirar brutalmente a vida a animais para aproveitar as suas peles para os esbeltos casacos. Compreendo-as, apesar da nota folclórica que é indisfarçável. E dou comigo a pensar o que diria se alguém, algum dia, me desafiasse a dar a minha nudez contra as atrocidades cometidas sobre tantos animais. Não sei se a resposta está preconcebida pela certeza de que ninguém se queria aproveitar da minha nudez para o efeito. Ainda que a hipótese se colocasse, não hesitava em concordar. Como não hesitava em aplaudir quem – como vi num filme qualquer – inutilizasse um casaco de peles majestoso com um spray vertendo tinta vermelha.

Nestas ocasiões não consigo reprimir a revolta interior. Vejo-me um militante defensor dos animais. E desafio os que consideram que é na superioridade do ser humano que está a justificação para que os outros animais estejam ao serviço das necessidades humanas. Argumento insidioso, é ele que me coloca mais perto de ser vegetariano. Já esteve mais longe.

16.12.04

Sessenta dias

Dois meses a aprender a viver. Sessenta dias de pulsões diárias, num mundo novo que nos trouxeste. Dos teus olhos azulados, o mundo passou a ter outras tonalidades. Como se uma imparável maré de tinta, de cores alegres, tivesse tingido o planeta. Contemplar o teu sono tranquilo é como fitar o horizonte e saber que no sol que se põe vem o anúncio de dias cheios de vontade para tirar tudo o que a vida tem para oferecer.

Os choros, as comoções, os risos que ao início só existiam nos teus sonos. Tudo e mais alguma coisa. Percorrer novos caminhos, com emoções nunca vividas – é o património de uma vida nova que traz novos horizontes à existência. Quando sussurras pequenos gemidos de contentamento, depois de saciares a tua fome, é como se me tivesse banqueteado com um lauto repasto – ainda que o meu estômago estivesse a ranger de fome. Os choros que preenchem a casa, uma melodia que encanta, mesmo quando eles perduram.

Os dias passam e vais tomando mão nos teus pais. Esboças largos sorrisos que são como pétalas que sucumbem de uma árvore mágica. Com eles perfumas a casa. Nem os sonos quebrados a meio, ou aqueles dias em que sentíamos a dificuldade na tua respiração, tiraram o encantamento. Em vez da inquietação, do sobressalto pelo mínimo ai, é o embevecimento que triunfa.

Não hão-de faltar ocasiões para celebrar contigo. A cada dia que passa, a cada momento que sinto que devia partilhar mais tempo contigo, sei que tu já sentes que estou por perto. Reconforta-me saber que sou teu anjo protector, tal como sei que me deste coisas que nunca pensei que fossem inteligíveis. Olhar-te sem dar conta do tempo a passar é dos momentos mais gratificantes na rotina diária. Uma rotina que não o chega a ser, tantas as recompensas que a abstracção de tudo me trazem esses singelos momentos. É como se houvesse um feixe de luz a entrar directo em mim, com a força indómita da vida repleta de coisas por aprender que carregas em ti. No final, sentir que sou eu que tenho que reaprender através da tua aprendizagem.

Cada segundo de vida que passa por ti é um mistério por sondar. Adivinhar os teus sonhos, ora de sobressalto como de empolgantes sorrisos, é tarefa impossível. Já deixei de imaginar os mundos que se desvelam em ti para teres esses esgares no sono. Emudeço ao observar como olhas com curiosidade para as coisas que estão à tua volta, como as cores e os sons despertam os sentidos. Percorrer contigo as veredas que vão no encalço do crescimento motivam novas entrelaçados com o tempo vindouro. Elos perdidos deixam de fazer sentido.

Ao deitar, passo pela tua cama. Espreito, ansioso por confirmar que estás num sono tranquilo. E perco-me mais uns minutos na contemplação da pequena deitada na sua cama, braços para cima, os lábios que sorvem uma refeição imaginária. Passo ao de leve pelas tuas mãos. Afago-as, sempre frias e esbranquiçadas, e deixo-me enlevar pela ternura que sinto exalar da tua pele. Estou então preparado para embrulhar o sono, tão tranquilo como o teu. Contagiado pela força indomável da tua frágil existência.

O tempo é o juiz supremo do caminho que se abre por diante. Tempo frugal, que obriga a olhar para trás e esconde que dois meses, sessenta dias, levas de vida. Nem parece que ainda ontem começaste a espreitar, temerosa, um mundo diferente daquele que a tua mãe te deu na gestação. Esse é o tempo que, contigo ao lado, abranda. O tempo que queria congelado nos momentos em que o resto deixa de fazer sentido, quando estaco diante de ti sem vontade para nada mais fazer. É aí que, por breves momentos, acredito que o tempo se imortaliza: nessas imagens capturadas para todo o sempre, bem resguardadas da poeira do tempo.

15.12.04

Copiar é uma arte

Saio da universidade, num intervalo entre aulas. Dirijo-me para o portão e vejo, ao fim da descida, quatro alunos parados em alegre conversa. Como estavam de costas, não se aperceberam que me aproximava. Ao passar por eles, pude apanhar uma parte da conversa:

- Que achas?

- Não é difícil. Ainda por cima o Prof. põe-nos à vontade. Com este é fácil copiar.

O passo apressado apenas deu para captar esta parte do diálogo. Deixei o portão para trás, atravessei a rua e dirigi-me ao carro. Meia dúzia de metros antes do sítio onde o tinha estacionado, alguns pequenos papéis espalhados pelo chão. Detive-me, por breves momentos, porque sentia ter alguma familiaridade com aqueles papéis. Eram “auxiliares de memória” que já tinham prestado a sua função a um aluno mais preguiçoso.

Os papéis eram-me familiares: já por várias vezes encontrei coisas do género perdidas negligentemente no chão, ou mesmo de forma provocatória deixados junto a caixotes de lixo em salas de aula. Pequenos rectângulos de papel, letra minúscula a exigir uma boa lupa, convocando as possibilidades tecnológicas do momento: o processamento de texto dos computadores que permite redigir em letra pequena, a que se junta a possibilidade de realizar fotocópias reduzidas que acobertam os copianços da vigilância zelosa dos professores.

O terceiro acto: horas mais tarde, quando regressei para uma aula. Ao expor a matéria gosto de estender as pernas, caminhando de um lado para o outro da sala. Quando a configuração da sala o permite, estico-me ao longo da sala, percorrendo o corredor central que separa as duas fileiras de carteiras. Foi num destes momentos que reparei nas costas de uma cadeira diligentemente preenchidas a lápis com dizeres que tinham algo a ver com uma disciplina da área da sociologia. A criatura autora dera-se ao trabalho de ocupar uma sala, antes do teste ter lugar, e com paciência de chinês deu uma nova aparência às costas da cadeira. Adivinho que o fez com a cumplicidade de alguns colegas colocados à porta da sala, não fora acontecer que um contínuo irrompesse sala adentro e abortasse a tarefa.

Costumo dizer aos meus alunos que copiar é uma arte. A ciência está em saber – e conseguir – enganar o professor. É um domínio em que a imaginação fértil é um instrumento que os coloca na senda do sucesso. Por mais atento que este esteja, é impossível vigiar uma sala com dezenas de alunos a fazer um exame. Não sou daqueles que percorre ansiosamente a sala em busca dos infractores, criando um clima de terror psicológico que amedronta os que querem infringir e aqueles que nada têm a temer. Até acontece que por largos momentos me alheio da audiência, passando os olhos por um livro que me acompanha em vigilâncias de exames. É aí que os pequenos papéis começam a espreitar entre mangas de casacos, entre a folha de rascunho que o esconde, nas pernas que se entreabrem para destapar os milagrosos papelinhos.

Só me aborrecem aqueles alunos que o tentam fazer de forma descarada, descuidada. É nesses casos que pratico a minha vingança. Deixo-os provar o fruto proibido, permito que eles achem que me estão a enganar. Deixo-os imersos na convicção de que o sucesso está ali ao virar da esquina. Quando a coisa passa a ser flagrante demais, acerco-me do artista e exijo que entregue os “auxiliares de memória”. De seguida, marco na folha de teste o momento em que o aluno foi apanhado e informo-o que tudo o que escreveu até aí não conta para efeitos de avaliação. Só o que vier daí para a frente será corrigido e avaliado. Na maior parte dos casos, ao fim de alguns minutos entregam a folha de teste e declaram desistência. Acabam por ter sorte: seria mais humilhante aparecer na pauta a menção “anulado” do que a informação de “desistência”. Eis a dimensão da minha generosidade…

Isto no dia em que na sala de professores encontrei uma colega – daquelas que irrita o mais pacato – a perorar sobre a geração perdida que se senta diante de nós nas salas de aula. Já não é a primeira vez que ouço lições de moral da boca da senhora. Hoje indignava-se contra o matraquear (porém silencioso) nas teclas de telemóvel quando, a meio de uma aula, um aluno decide responder a um SMS. Com um sentido de humor duvidoso que vai fazendo escola naquela casa, exige que o aluno se aparte do “tamagochi”. Por, nas suas palavras impregnadas de uma moralidade acima da média, o aluno perturbar a atenção dos colegas e da própria professora.

É nestas ocasiões que prefiro um aluno matreiro, preguiçoso, desinteressado, com tendência para a infracção. É mais fácil aturá-lo do que estes pregadores de moral que se incomodam com a ínfima coisa.

14.12.04

Que lugar à nostalgia?

Cruzo-me com um amigo. A conversa trivial consumiu os primeiros minutos. De passagem pela política, tema que me causa urticária por estes dias, fiz menção de mudarmos de assunto. Pergunto-lhe como estão os filhos. Contrariando respostas passadas, o optimismo começou a irromper nas palavras proferidas. Já não como antes, em que à pergunta respondia com a extenuação que lhe corroía por dentro, porque os dois filhos vieram quase seguidos e o primeiro não o deixava ter noites descansadas.

Desta vez, não me deixou conselhos de amigo que têm um travo de presente envenenado. Não me alertou que a vida passava a ser diferente, que ia deixar de ter tempo para as minhas coisas, para mim mesmo, que agora tudo gira em redor da criança acabada de nascer. Quando ouvia a ladainha, interrogava-me se era mesmo verdade que a vida de pai se transforma de tal maneira que o filho passa a ser o centro do universo. Como se apenas existisse o filho e nada mais importasse; como se o filho levasse ao desprendimento do pai, doravante destituído de existência própria. Descontava os exageros de retórica que lhe invadiam o discurso: não deve ser tarefa fácil ter dois filhos intervalados por um ano, para mais quando o primeiro não deixava lugar ao descanso nocturno dos pais.

Não é isto que me leva ao texto de hoje. A conversa entretanto desviou-se para outro assunto, que tocava lateralmente o tema dos filhos e da alteração da vida a que estávamos habituados. Sem saber como, a conversa confluiu nas memórias do passado. Quando as namoradas ainda não existiam, quando nos reuníamos todas as noites na Maiorca para tomar café e pôr a conversa em dia. Disse-me que tem saudades desse tempo, em que as conversas oscilavam entre assuntos banais e outros mais interessantes. Sentia falta das noitadas em casa dele, à volta de uma mesa, de um baralho de cartas e de copos regados de forma frugal. Sentenciou, com pesar: “agora é tudo diferente. Quase não tenho tempo para mim”.

Com isto tinha chegado a hora de iniciarmos as nossas aulas. Fomos subindo as escadas em passo lento, trocando as últimas palavras que convocavam a nostalgia mais funda. Duas horas depois, no final de mais uma jornada de trabalho, encaminhava-me para o carro quando me lembrei de algumas passagens da conversa. Interroguei-me se estes assomos de nostalgia (em doses variáveis consoante as pessoas) são sinal de perplexidade ou apenas a memória a deitar cá para fora as boas recordações que restam do passado. Quando se faz a retrospectiva dos momentos que preenchem o álbum das boas recordações, será sinal de descontentamento com o que temos hoje?

Já sentado no carro, fiquei imóvel por momentos a pensar na dúvida que me assaltava. A resposta não tardou. Por mais compensadores que sejam os momentos de nostalgia, por mais que se eleve o bem-estar quando as recordações emergem à superfície, à nostalgia fica reservado um papel menor. Não é sonegar o passado – seja o que de bom ficou para trás, sejam as más recordações, ou as más experiências de vida que serviram para amadurecer. É apenas sentir que o passado está feito e não volta a acontecer. Destapar o baú das recordações poderá ser gratificante para quem vive atormentado com o tempo presente. A asfixia deste tempo traz a sede pelo tempo que se ausentou, perdido nas folhas rasgadas do calendário. A poeira levantada ao abrir o baú do passado pode toldar o discernimento.

Por via de dúvidas, lancei outra vez a interrogação: e tu, Paulo, tens saudades desses tempos? Fazem parte do património das boas recordações do passado. Seguro de que tudo na vida tem o seu tempo, senti que a minha vida marcou encontro com esses momentos algures no passado, algures num momento certo. Não digo que tenha saudades como se o regresso a esse tempo fosse vital para a felicidade. Até porque de seguida surgiu outra interrogação no horizonte: e se o destino quisesse que as voltas da vida tivessem sido diferentes? E se estivesse sozinho, mais disponível para continuar a frequentar tertúlias nocturnas, não sentiria falta do que sabia não ter e que agora tenho?

É a irreprimível tendência do ser humano: não estar satisfeito com o que tem, ambicionar regressar ao que já teve, para logo de seguida carpir o arrependimento pela decisão tomada. Temos uma essência de eternos insatisfeitos!

13.12.04

Monumento à decadência

Está situado em Matosinhos, no final da circunvalação, quando a estrada desagua numa rotunda que a separa do mar. Há um par de meses plantaram dois enormes pilares de metal, um de cada lado da rotunda. Durante algum tempo a incógnita pairou no ar: para que serviriam aqueles pilares? Sempre desconfiado destas iniciativas de políticos com queda para a megalomania, não augurei nada de bom.

Tempo mais tarde, o produto final era dado a conhecer com toda a sua resplandecência. Uma rede gigantesca dependurada, presa ao alto das hastes dos pilares. Ambas as peças – pilares e rede – pintadas em sucessivas faixas de vermelho e branco. A rede tem, na sua parte superior, uma boca larga, afunilando à medida que se aproxima do solo. Ondula com os movimentos que lhe são trazidos pelo vento. Não é uma ode à boa estética.

Todos os dias deparo com este esboço de monumento e fico perplexo com o possível significado que os seus fautores lhe quiseram dar. Desconheço se há explicação oficial para a obra. Não li notícia sobre a sua inauguração, onde seria de esperar que os autarcas locais tivessem fornecido explicação para o nascimento de insólito monumento. Só me posso deitar a adivinhar. Confesso que esse é um exercício difícil. Por mais voltas que desse à cabeça, a cada dia que me cruzava com o monumento não conseguia chegar a conclusões plausíveis.

Mas eis que se fez luz. Acho que compreendi a mensagem que o monumento quer deixar para os anos vindouros. Ao reparar com mais atenção na forma da rede que desce do alto dos pilares, lembrei-me do poço da morte que costumava ser espectáculo circense. No poço da morte, dois motociclistas kamikazes desafiam as leis da gravidade, fazendo piruetas ensandecidas nas paredes inclinadas de um funil de madeira. Aquela rede tem as formas parecidas com o funil onde os artistas do poço da morte faziam as suas tropelias. Que é o que o autarca de Matosinhos se habitou a fazer ao longo dos anos infindáveis que leva ao leme da edilidade.

Que saiba, o espectáculo do poço da morte já não tem a mesma assiduidade do passado. Sinal dos tempos. Também será sinal de um tempo que não se repete para o “senhor de Matosinhos”. Adivinhando que o seu tempo chegou ao final da linha, terá querido perpetuar a sua marca com este monumento que regista o dedo indelével da sua passagem à frente dos destinos da cidade. Já nem discuto a exaustão do erário público que a obra representa. Decerto não havia outras prioridades – nem que fossem as tão queridas, para gente desta cor política, “preocupações sociais” – onde utilizar os recursos municipais que, para os autarcas, são sempre escassos.

Afinal a obra encaixa-se no perfil do homenageado. Talvez sem dar conta do que encomendou, o edil acabou por se retratar no monumento que mandou edificar. Vista de cima, a rede é um convite ao abismo. A sua boca de grandes dimensões afunila quando a rede desce a caminho do solo. Como se fosse um enorme sorvedouro, que suga até ao tutano. Não terá sido isto que o autarca em causa andou a fazer durante anos a fio?

O monumento encerra um outro significado. Quem olha para o cimo vê alguma grandeza, detectável pelas dimensões generosas da obra. Quando os olhos percorrem a rede em direcção ao chão, a dimensão esgota-se num decepcionante nada. Nisto o monumento será a imagem do cadastro do edil: entradas de leão, saídas de sendeiro. Não que a sua reputação nacional fosse imaculada. Mesmo dentro do seu partido, as manhas já tinham sido descobertas há muito tempo. Não estava entre as personalidades recomendáveis para dignificar a imagem exterior dos socialistas. Tratava-se de um fenómeno localizado, com a sua credibilidade concentrada na região que o viu fazer política autárquica a partidária.

Os últimos anos testemunham a queda no abismo. Outrora dominava a distrital dos socialistas, que entretanto perdeu. Outrora foi o senhor sem contestação da concelhia e do município, que se confundiam com a sua pessoa. Nem isto hoje consegue dominar. É a imagem do monumento, quando se olha na sua queda vertiginosa em direcção do solo. Nunca a obra de um autarca foi tão bem retratada! Com outra nota curiosa: o outro monumento à inutilidade (o famoso edifício transparente) agora já não está órfão. A menos de cem metros jaz um seu irmão, esta elipse vermelha e branca que espeta no solo a decadência de um dinossauro da política autárquica prestes a passar à história, sem glória, imerso na peixeirada (nunca a palavra se utilizou com tanta propriedade…) da lota que ceifou a vida de Sousa Franco.

10.12.04

Beautiful people

A Suzi, a cadela da casa, tem uns jornais estendidos no chão de uma das varandas. Os jornais servem para que ela liberte as urinas que não vão a tempo de ser despejadas nos passeios higiénicos que fazemos nas redondezas do prédio. Em tempos, a minha cadela tinha o luxo de urinar no Financial Times. Era, por assim dizer, um chichi com elevado teor de alta finança. Entretanto o Financial Times deixou de jazer, abandonado, pelos cantos da universidade. Agora a sua vez foi tomada pelo Mundo Universitário – um jornal de divulgação das actividades extra-académicas dos estudantes universitários. A nossa empregada encarrega-se de trazer resmas destes jornais para a Suzi os emporcalhar com a sua urina. Triste fado, o do mundo universitário que temos…

Nos últimos dias, quando vou à lavandaria e os olhos se cruzam com o chão, dou de caras com as mesmas páginas do Mundo Universitário. Quando se desdobram os jornais para fazer o urinol de substituição da Suzi, na maior parte das vezes abrem-se os jornais nas páginas centrais. É aí que, na última edição do Mundo Universitário, aparecem fotografias tiradas a jovens universitários em pleno divertimento nocturno. Pelo que pude reparar, é uma página habitual do pasquim. E como está nas páginas centrais, a secção deve ser um sucesso. As jovens criaturas que cirandam pelo meio nocturno estão sempre a jeito para a fotografia, ansiando que a sua seja uma das escolhidas para a selecção da próxima edição do jornaleco. É o estigma do beautiful people em todo o seu esplendor.

A mania do beautiful people é uma degenerescência do pretenso jet set nacional. Há as pessoas bonitas, aquelas que com a sua presença embelezam sempre uma festarola. As carinhas larocas de meninas que acabaram de ser imberbes e que preenchem com cores efusivas as páginas de jornais e revistas cor-de-rosa. Há as personagens inevitáveis, que já são património genético da propalada “vida social” do burgo. São os inspiradores de uma nova leva de aspirantes que querem singrar no meio. Surgem, empoleirados, sorriso rasgado de orelha a orelha, tentando subir mais um degrau que os levará ao reconhecimento público. Contentam-se com pouco – que para eles e elas será a aspiração máxima que a sua vida pequenina pode ambicionar: aparecer, aparecer, aparecer. Debaixo das luzes da ribalta. Sempre como exemplares de um paradigma da vacuidade doméstica: a gente bonita.

Às vezes ouço: “hoje gostava de sair para ver gente bonita”. A reacção espontânea que se apodera de mim é ficar em casa, não querer aturar as cabeças ocas da gente bonita. Sem contar que fico ofendido: então não se dá o caso que a cara-metade, ao anunciar que gostava de espairecer a mente dando uma vista de olhos pela “gente bonita”, dá a entender que a outra metade da cara dela (que sou eu) não é uma pessoa bonita? Atenção à subtileza: uma pessoa bonita não é a gente bonita que enxameia o inefável mundo social que emprenha as revistas cor-de-rosa. A diferença desnuda-se à vista desarmada: a gente bonita é um produto que não passa da superficialidade do embrulho. Raspado o verniz que o encanta, é o deserto de ideias. Nem sequer se pode dizer que são bonitos por fora e feios por dentro. Na sua maioria, nem sequer têm essa capacidade para serem feios por dentro. São apenas nulidades.

Este é um local curioso para se viver. Olhando para as tiragens dos órgãos de comunicação social, o segmento das revistas cor-de-rosa anda nos píncaros. Temos uma população que consome com avidez as tricas e baldrocas reportadas nessas revistas. É uma população sequiosa de saber as últimas da vida pessoal de uma certa vedeta, como houvesse a obrigação de partilhar a vida desta pessoa. E temos muita gente que devora as páginas destas revistas na esperança de que, finalmente, a sua fotografia apareça. É o êxtase, a consumação final de um projecto de vida. Para dizer a amigos e família, até à exaustão, que na edição 467 apareceu na revista.

Não sei se será mau feitio, mas apetece-me dizer, perante as evidências: com este universo de beautiful people, eu cá prefiro os feios, porcos e maus!

9.12.04

Responsabilidade pessoal: o que falta aos ex-fumadores

Convém não generalizar: nem todos os ex-fumadores se esquivam à responsabilidade pessoal. Só aqueles que, mercê da doença que levou parte da traqueia num maldito cancro, querem obter chorudas compensações das empresas tabaqueiras. A moda começou nos Estados Unidos. Clinton forçou um acordo entre as tabaqueiras e as associações de ex-fumadores para que as primeiras pagassem milionárias indemnizações às pessoas vitimadas por anos a fio de consumo de tabaco. A moda contagiou-se ao outro lado do Atlântico, já tendo chegado a Portugal.

Os comportamentos pessoais que visam sacudir a água do capote, passar um esponja por certos actos praticados no passado, são deploráveis. Enxotar a responsabilidade para os ombros de outrem, como se a pessoa alheia aos actos fosse a primeira responsável por eles, não abona em favor de que assim actua. Os ex-fumadores que tiveram a desdita da doença lancinante que os diminui para todo o sempre; as pessoas que tiveram ainda mais azar e viram a vida ceifada pelo consumo do tabaco; os familiares de quem já partiu, que juram vingança – todos formam uma amálgama que pretende passar uma esponja pelo passado. Querem responsabilidades das empresas que acenavam com o vício do tabaco. Julgam que as tabaqueiras os envenenaram num trágico beijo de morte (para os mais infelizes) e de incapacidade (para os que ainda se mantêm vivos).

Actuam como se fosse possível crer que, enquanto fumadores, eram simples autómatos. Ao exibirem a sua revolta contra as tabaqueiras, os ex-fumadores querem passar uma mensagem bem clara: enquanto foram fumadores não podiam assumir responsabilidade pelo acto de sacar um cigarro, puxar do isqueiro, acendê-lo e degustá-lo até ao filtro. Tudo se passou como se andassem hipnotizados pelo vício tabagista, exangues de livre arbítrio. É o cúmulo da desresponsabilização pessoal: querer atirar as culpas dos actos individuais para alguém que está fora da sua esfera.

Quando vejo as associações de ex-fumadores a clamar por justiça, e quando me lembro da onda higienista que varre o mundo – sempre pronta a impor comportamentos, com gentileza a apontar os “caminhos do bem” – cresce a inquietação. Primeiro, porque há juízes que são o alicerce deste “higienismo” social que se enraíza, lançando as bases para o ostracismo dos que desalinham. Depois, porque as pessoas começam-se a aperceber que vale a pena provar o fruto proibido: sabem que a jusante alguém há-de suportar as suas responsabilidades. Por fim, esta mania pode abrir precedentes perigosos. Pode lançar a ponte para que o mesmo aconteça noutras áreas, sedimentando a ideia de que não somos senhores da nossa vontade porque, por conveniência, acreditamos que ela é comandada por uma qualquer entidade com forças superiores às nossas. É um simples pretexto para fugirmos da culpa própria. O amesquinhamento de cada um que lança as culpas para outros, na confissão pública de seres que de tão pequeninos não merecem a maioridade social.

Estou a adivinhar futuros actos desta maquiavélica encenação. Também a sinistralidade automóvel faz muitas vítimas. Também aqui os actos individuais importam acima de tudo (descontando os defeitos das estradas, a má formação com que saímos das escolas de condução, etc.). Vai demorar muito tempo até que as vítimas de acidente de viação (e seus familiares) comecem a inundar os tribunais com processos para extrair lucrativas indemnizações dos fabricantes de automóveis? Afinal são eles que, com o avanço da tecnologia, fazem carros mais rápidos. A velocidade é um convite irrecusável às sensações fortes. Os culpados são os fabricantes de automóveis que deviam pôr um travão na performance dos carros. A lógica é a mesma dos ex-fumadores que querem sacar dinheiro às tabaqueiras.

A eito, uma convicção que se reforça: quando tanto se quer confiar na vontade de cada cidadão como base de uma responsabilidade colectiva que é o património do que somos, como justificar a responsabilidade colectiva se fugimos a sete pés da responsabilidade individual? É a rábula de construir uma casa começando pelo telhado: tarefa impossível. Acobertamo-nos nos outros, nessa coisa abstracta que é o “Estado”. Na falta de discernimento para assumir as responsabilidades dos actos individuais, virá o Estado, entidade sempre paternalista, colocar a mão no nosso ombro para aquietar as más consciências. No rescaldo, o que se vê: a apetência para endossar a responsabilidade de cada um para todos os demais; a demissão de cada eu como eu diferente do outro.