Andar no metro do Porto tem as suas compensações. Ou para fugir ao trânsito da cidade – quando a azáfama da quadra complica ainda mais o trânsito – ou para ler os poemas afixados em painéis nas carruagens. Já não andava de metro desde Junho. Perto do natal tive que ir à baixa da cidade e não hesitei: o metro seria a melhor solução. Só no regresso é que pude reparar no poema que enfeita algumas das paredes das carruagens. Um poema sobre os perus de natal.
Um poema escrito, decerto, por um jovem da onda undergound. Um poema pouco convencional, a fazer lembrar as rimas e ritmos do rap. Com um destinatário claro: a tenra idade, desde crianças a jovens, quando as convicções começam a borbulhar com toda a intensidade. O poema dirige-se ao receptor na segunda pessoa do singular. Quem o lê observa que está, enquanto leitor, a ser tratado por tu. Sendo a quadra natalícia o mote do poema, e sendo a empresa do metro detida pelo Estado – logo, o melhor leito para fazer repousar as tradições inquebrantáveis – seria de esperar uma ode às delícias que a ave proporciona por estes dias. Seria de esperar uma narrativa cheia de elogios aos sabores de um peru sabiamente recheado.
A surpresa não está apenas na escolha do peru como mote para o poema. A surpresa é ainda maior porque o poema traça um retrato pungente do sofrimento que aos perus está reservado durante os dias do natal. Um retrato sofrido, apelando à boa consciência dos jovens a quem o autor trata por tu. Assim excluindo os mais velhos, aqueles para quem a força das tradições é tão poderosa que os impede de ver, para além das suas papilas gustativas e da farta barriga, o sofrimento causado aos perus sacrificados durante o natal. Os jovens com quem o autor do poema quer nutrir um sentimento de familiaridade são levados a partilhar a dor sentida pelas aves cuja vida é ceifada para deleite egoísta de humanos que, com a abastança alimentar da quadra, estragam mais ainda a sua já débil saúde. A mensagem final: os jovens são convidados a deixar de comer peru.
Senti-me sensibilizado pelo poema. Não sei se o autor será vegetariano, usando a oportunidade que lhe foi dada para combater o consumo da carne que é mais típica da quadra natalícia. Não sei se será apenas uma consciência inquietada pelos requintes de malvadez que antecedem a degola do infeliz peru – a engorda à pressão, o tempero em vivo com a degustação forçada de quantidades generosas de vinho que devem ter um efeito devastador nos frágeis fígados das aves.
A parte final do poema não me era dirigida: peru é carne que não entra na minha boca. Mas fiquei tocado com o poema. Com a ousadia de inscrever este poema em carruagens frequentadas por uma turba ávida de se alambazar com as carnes temperadas do peru que fica a assar longas horas no lume brando do forno caseiro. Com a ruptura de costumes estabelecidos, dando uma perspectiva diferente daquela a que milhares de utentes do metro estão habituados por alturas do natal.
Desconfio que a intenção – se é que foi dar voz a alguém empenhado em denunciar as barbaridades que os perus passam para comprazimento dos comensais natalícios – não terá chegado longe. Ou porque a multidão que frequenta o metro não tem hábitos de leitura, não tendo motivação para cansar a vista num conjunto de palavras ordenadas em meia dúzia de estrofes (até porque os poetas, para esta gente, fazem parte de um grupo de lunáticos a quem não deve ser prestada atenção). Ou porque, para os poucos que ainda se deram ao trabalho de deslindar o poema, a mensagem terá passado ao lado. Não será a voz de protesto de um poeta que terá andado a fazer graffitis nas paredes da cidade que toca no âmago desta gente. Ler o poema terá sido já uma grande vitória dos promotores da iniciativa. Fazer chegar a mensagem ao destinatário é outra conversa.
Terá valido a pena a ousadia de cortar com os hábitos estabelecidos e publicar este poema andante, que dia após dia percorre as linhas do metro, se os “tus” a quem se destinava se arrepiarem com o tratamento bestial que os humanos dedicam aos perus de natal.
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