(Ou um natal como “deve ser”)
Lá fora, a neve cai. Os flocos pousam levemente, preenchem as camadas sucessivas de neve que se acumulam no beiral da janela. As copas das árvores vão perdendo a cor verde, revestindo-se da alvura da neve que pesa sobre as suas folhas. A noite vai caindo.
Dentro da casa, a azáfama natalícia invadiu o espaço. Todos, à sua maneira, dão um contributo para a noite que se avizinha. Na cozinha, os preparativos gastronómicos soltam uma mistura de odores que invade a casa. São os cheiros que se associam à quadra: as rabanadas, os sonhos, o odor da canela fervida com o limão nos preparativos para os formigos. Outros encarregam-se da mesa. Decorada a preceito, porque esta é uma noite única no ano. Há que esmerar nos pormenores, usando ornamentos alusivos ao natal. Os guardanapos trazem um tom garrido à mesa: são em tom avermelhado, com motivos natalícios (pais natais que se fazem transportar por renas). Inspecciona-se a árvore de natal, para ver se não há nenhuma bola partida pelas garras do gato atrevido, se todas as luzes estão funcionais.
Na sala, a lareira é vigiada. O frio anunciado pela neve não pode tomar conta da casa. Os pedaços de madeira, cortados ainda de manhã, ainda a neve não tinha chegado, são resguardados junto à lareira. Estão prontos a serem consumidos pelo fogo, iluminando com as suas labaredas o natal da família. A tenaz que mexe e remexe os nacos de madeira é manipulada pelo avô. Ninguém como ele sabe fazer uma boa lareira. As chamas vão crepitando, as cinzas incandescentes fazem-se notar no chão da fogueira. O odor a fumo vai-se misturando com os cheiros que vêm da cozinha. Conferem uma atmosfera única, consumam o quadro que se confunde com o natal que se sucede ano atrás de ano.
As pessoas vão chegando. Carregadas de sacos, que amontoam as prendas que hão-de ser trocadas quando a noite já for alta. Guardam-se os sacos num lugar esconso, resguardados da curiosidade das crianças. Na cozinha, os últimos preparativos para o jantar. Na sala, os homens põem a conversa em dia. Os temas controversos ficam, por um dia, à porta da rua. Todos convertem os espíritos para a concórdia natalícia. As crianças assenhoreiam-se da algazarra. Estão excitadas, a contar as horas que faltam para a visita do pai natal. A contagem decrescente dos dias chegara à mágica folha do calendário: “24”. Nunca como noutros dias é tão reconfortante rasgar a folha do calendário do dia que se esvaiu antes do sono.
Já estão todos em casa. Da cozinha vêm instruções para as pessoas se sentarem à mesa. O apetite voraz dos comensais mais velhos contrasta com o desejo das crianças que o tempo da refeição não se eternize – não vá o pai natal fazer um desvio e retardar a sua visita. A impaciência começa a gotejar à medida que os mais velhos prolongam o banquetear das iguarias da época, que desfilam umas atrás das outras sem cessar. Só quando as barrigas começam a ficar fartas, os ouvidos dos mais velhos despertam para as preces dos mais novos.
Eles não se cansam de perguntar se o pai natal está longe. Um dos mais velhos, com a mania das tecnologias, simula uma conversa com o pai natal através do telemóvel. Sentencia: “dez minutos, o pai natal manda dizer que está aqui em dez minutos”. É a senha para um dos mais velhos se ir vestir de pai natal, carregando, com a ajuda de uns acólitos de ocasião, os fartos sacos de prendas. O barbudo de vermelho vestido descarrega os sacos e deseja bom natal a todos, despedindo-se até ao ano que vem. Lamenta não poder ficar, mas a noite é trabalhosa e outras casas merecem a sua visita.
É o momento mítico da noite. Os mais novos esbugalham os olhos de cada vez que o seu nome é anunciado. Desembrulham as prendas com avidez. Reagem com excitação a algumas das prendas, com indiferença às mais simbólicas. Deixam de lado as que menos lhes interessam e concentram-se nas mais vistosas. Os mais velhos deliciam-se com a exultação delas crianças. Ao fim de meia hora, a excitação começa a ser invadida pelo cansaço. Foi muita a espera, e muitas as emoções que levaram os mais novos à exaustão. Começam a espalhar-se pela sala, vencidos pelo sono. É chegado o momento de arrumar as coisas na cozinha. Ficam empilhadas para o dia seguinte, porque a canseira também derrotou os mais velhos.
As despedidas. Cada um vai para o seu quarto, outros agasalham-se porque têm de regressar às suas casas calcorreando as estradas geladas pela neve que entretanto fez uma trégua. Mais um natal, mais votos de que no ano seguinte todos estejam reunidos à volta da mesa para celebrar a festa da família. O habitual. A modorra que se vai instalando, ano após ano, mas que é sempre festejada e leva os mais cépticos a arranjar forças, lá no fundo, para ver no natal um motivo de alegria.
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