30.12.04

Quem precisa de heróis?

Outra interrogação anda de braço dado com esta: porque temos necessidade de projectar a nossa existência em heróis? É um comportamento habitual: ver noutro aquilo que gostaríamos de ser, não fossem as nossas limitações um óbice ao estrelato. Daí que se endeusem figuras postiças, deuses com pés de barro que escondem a vacuidade absoluta. O que conta, para quem vive agarrado à necessidade de se projectar em heróis, é fazer de conta que a sua vida mundana e corriqueira devia ser a vida levada por aquela pessoa em quem é depositada uma admiração sem fim.

Para muitos haverá confusão entre admirar alguém pelas suas qualidades intrínsecas e endeusá-lo como se fosse uma entidade divina, imaculada de vícios. Quando olho em redor e vejo pessoas a dizerem que fulano é o seu herói na literatura, ou que beltrano é o guru espiritual que seguem com uma devoção cega, vejo pessoas que precisam de encontrar fora de si um objecto de admiração que, num passo, chega ao estatuto de heroicidade. Isto causa-me alguma perplexidade. Não sei se é por nunca ter tido heróis – nem mesmo na adolescência, quando os verdes anos estendem a passadeira a heróis efémeros – mas fico num beco sem saída quando tento perceber porque as pessoas procuram fora de si os heróis que não conseguem ser. Sei que o paradigma do anti-herói resvala para um perigoso extremo de narcisismo. Talvez este seja um dos (poucos) domínios de vida em que a virtude reside no meio.

Há um espaço enorme: entre o desprendimento de si mesmo que leva a projectar a frustrada existência num herói; e a recusa em admirar quem quer que seja para além da sua própria existência, num assomo vertiginoso de narcisismo. Há um espaço enorme por preencher, mas é um local vasto onde a posição mais racional tem a sua residência. Nem endeusar heróis, nem cair na tentação de desdenhar todos os outros, de os ver como criaturas inferiores, incapazes de chegar aos calcanhares de quem se vangloria estar tão acima da mediania. Para quem sente a necessidade de se mirar num herói, os que renegam o dogma da heroicidade alheia são catalogados como narcisistas incorrigíveis. Quem atesta deste modo está a recusar ver o amplo terreno que vai de um extremo ao outro.

Há muitas maneiras de construir heróis. Há heróis que permanecem para sempre, numa fidelidade impressionante que se confunde com a perda de auto-estima, com a abdicação de um espírito crítico. Há heróis de hoje que o deixam de ser amanhã, com o fluir dos humores e dos comportamentos próprio de quem se ausenta da estabilidade emocional. Há os heróis que o são sem que sejam assumidos nessa condição. Há os heróis formulados num manto de incoerência: por aqueles que são ásperos críticos da dependência alheia de que a religiosidade é tributária, mas depois endeusam figuras que corporizam os seus códigos de conduta. Em todas as formas possíveis de projectar heróis, há um desprendimento do eu que tenta imaginar a sua ambicionada existência num alter-ego que não conseguiu ser. Endeusar heróis é uma forma de prolongar a dependência do eu em relação a outrem, afinal um estigma que persegue o indivíduo desde os primórdios.

Dir-me-ão que admirar as qualidades de outrem é um acto de humildade. É reconhecer as qualidades acima da média que elevam alguém ao estrelato. E que a recusa da heroicidade arrepia caminho para o ensimesmamento, para uma voragem egoísta que impede de ver as qualidades inatas dos outros. Um acto de vaidade que ofusca as qualidades superiores dos outros. Aceito o diagnóstico. Ele coincide com o extremo do narcisismo. Já não consigo perceber porque motivo a admiração acaba por se confundir com a vassalagem prestada a um herói. Alguns não usam a palavra, talvez por pudor, por perceberem que a palavra em si é excessiva. Outros, mais desassombrados, têm a frontalidade de se reverem em heróis – e utilizam a palavra sem receio.

O que me leva à perplexidade é isto: tratar alguém por herói é afirmar que estamos na presença de alguém acima de qualquer suspeita. Alguém que não carrega consigo o fardo dos defeitos tão próprios da espécie humana. Um herói acima da condição humana, afinal um não-humano. É isto que não consigo compreender: a necessidade de encontrar heróis, que projecta a existência ambicionada numa vida isenta de defeitos. Será a negação do ser humano na sua melhor qualidade: a humildade para reconhecer as suas limitações.

Por isso é que me recuso a ver em qualquer ser humano um herói. A melhor homenagem que posso prestar a qualquer pessoa é recusar-lhe o estatuto de herói. Sob pena de o estar a desviar da sua condição humana.

2 comentários:

Anónimo disse...

Amei seu texto
me auxíliou num trabalho para faculdade de jornalismo UFG
beijos

anna clara
goiania-go

Milu disse...

Bem verdade o que diz! Ainda há pouco tempo tive a oportunidade de constatar, que o facto de uma determinada pessoa se destacar dos comuns humanos, não faz dela um ser especial e digno de ser idolatrado. Muito pelo contrário, por vezes, albergam dentro delas, sentimentos bem controversos! Você não gosta de adágios populares, mas olhe que, frequentemente, bem ilustram a realidade! "Quem vê caras, não vê corações", ou, "Nem tudo o que brilha é ouro".