1.12.04

E se o 1 de Dezembro de 1640 não tivesse existido?

Imaginar, por artes de magia, que o calendário de 1640 tinha saltado uma folha: que a seguir a 30 de Novembro tinha vindo o 2 de Dezembro. Imaginar que não tinha ocorrido a restauração da independência que nos livrou da dinastia dos Filipes de Espanha. Especular, um exercício de imaginação que tenta perceber o que seria de nós como região de uma Espanha que então teria cumprido um objectivo que fermenta no mais recôndito do seu íntimo – abraçar todo o território da península ibérica.

É um desafio interessante. Mais pelo que de provocatório encerra, olhando para as sensibilidades nacionalistas que ainda fervilham pelo território pátrio, lembrando as desconfianças que vêm de uma história feita de antagonismos com os vizinhos do outro lado. Não é por acaso que continua vivo o adágio “de Espanha, nem bom vento nem bom casamento”.

O orgulho nacionalista ainda mobiliza muitas vontades. É tão poderoso que chega para desprezar juízos que apenas olhem para o bem-estar material das pessoas. Se fossemos parte integrante da Espanha desde 1580 não estaríamos com um nível de desenvolvimento idêntico ao da média espanhola? Não seria sinónimo de mais bem-estar para os cidadãos desta que seria uma região autónoma da Espanha imperial?

As interrogações deixam escapar a vertente materialista, ofuscando os sentimentos de pertença que fazem de Portugal um país independente e garbosamente diferente da Espanha vizinha. Olha apenas para o bem-estar que a integração na Espanha poderia supor – partindo do pressuposto de que os mais de quatrocentos anos de destino comum seriam suficientes para obliterar as discriminações contra a região portuguesa, pelo seu passado de independência. Eis a pergunta que se impõe: estariam os portugueses dispostos a abdicar da independência do local onde se viram nascer em troca de mais bem-estar? Pergunta difícil de responder, até porque é intemporal – atravessa várias gerações, abrindo a hipótese das respostas serem variáveis de geração em geração.

Aposto que a esmagadora maioria dos portugueses daria um não à pergunta formulada. Independentemente de credos, condição social, nível de rendimento ou afinidades partidárias, temos inculcado o juízo da nossa identidade diferenciada. Somos diferentes dos espanhóis, desde logo porque falamos línguas diferentes. (Ignorando que há países multi-étnicos que falam línguas diferentes sem que seja um factor de desagregação do todo.) Qual o significado deste sentimento arreigado, numa era em que vai tendo aceitação a ideia do desenraizamento das pessoas, da crescente materialização das relações sociais, da volatilidade dos laços indentitários?

Na aparência, refulge aqui um paradoxo. Um paradoxo localizado que é, no entanto, explicado pelo peso acumulado da história. Factor decisivo: lembrar como é ensinada a história nos bancos da escola. Os feitos dos descobrimentos ainda são glorificados, a lembrar o povo grandioso que fomos no passado, a destapar a passadeira para as crianças perceberem, quando se fizerem adultos, como somos agora um povo deprimido (quando nos comparamos com esses antepassados). Mais importante, a história de Portugal está carregada de exemplos que moldam o subconsciente desde tenra idade: a Espanha aparece como o inimigo histórico. Contra a corrente, é difícil perceber que os tempos modernos não se compadecem com as ancestrais curvas da história. Porque o passado está feito e não volta a acontecer.

Hoje continuam presentes os sinais de animosidade. Continuamos a olhar com desconfiança para o vizinho do lado. Manifestamos preocupação pela invasão de empresas espanholas, pela compra de empresas portuguesas por capitais espanhóis, pelo mar de alimentos espanhóis nas prateleiras dos supermercados. Não temos a presença de espírito para calcular dois importantes aspectos: em tempos de globalização não faz sentido cada país achar-se isolado do resto do mundo; e esta invasão espanhola não periga a nossa tão querida soberania (com o que de incerto ela significa…), ela permite aumentar o bem-estar dos portugueses que, directa ou indirectamente, dela tiram partido (mais emprego; mais rendimentos; mais consumo, com preços mais favoráveis, etc.).

Impõe-se um pedido de desculpa pela heresia de tocar neste assunto logo no dia em que se festeja a restauração da independência. Apenas queria sublinhar como os sentimentos do passado merecem ser enterrados com o passado que fica distante nos tempos imemoriais. Verdade seja dita que, à excepção de uns poucos saudosistas (monárquicos – a quem, paradoxalmente, até devia interessar fazer parte da Espanha, pois sempre é uma monarquia…) e da iconoclastia oficial que obriga a comemorar o feriado, ele tem pouca importância. A não ser por significar um louvável dia de descanso!

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