De repente, sem aviso, o olhar cruza-se com uma inscrição numa parede antes desnudada. Alguém, desnorteado pela adversidade do desamor, lançou o grito de alerta. O sonho do amor deixou de ser possível. Temporário ou definitivo, o sonho deu lugar ao deserto interior. Desmembrada pela decepção, torturada pela dor, aquela pessoa protestou o incómodo que a corrói por dentro. Seria homem, seria mulher? A única resposta está em alguém que se deixou invadir pela desistência de lutar.
Já nem sequer sonhar. Tamanha é a dor cortante que nem sequer há lugar ao sonho. Imagino a pessoa, atormentada pelos caminhos ínvios do amor, acorrentada à não sorte de não conseguir amar. A dor que a paralisa, não a deixa atingir o patamar do sonho. Diria que vegeta, flutua na matéria incandescente dos sonhos que se esfumam com o tempo que não traz o amor.
Adivinho esta pessoa, amordaçada pelos murmúrios que deixou de proferir. Incapaz de pronunciar as palavras que dantes acreditava serem a chave para o bem-estar ausente. Afogueada pelas curvas sinuosas de um destino desavindo, descrente na profilaxia do sonho. Sonho feito estádio anterior ao amor, como se um sonho fosse o prenúncio do amor tão ansiado. Os sonhos que se desfazem, tal como se esta pessoa tentasse agarrar o vento entre os dedos. Dos sonhos desfeitos ao estigma do amor. Melhor, do desamor, do amor não emoldurado, do amor perdido na encruzilhada do tempo.
Há aqui uma ternura que se ausentou. Um paradoxo: alguém que se tenta reconciliar com a ternura de que tanto precisa, mas que dela se afasta para não ser torturado pelos descaminhos do amor. Ou pelos caminhos do desamor, que no caso vem dar ao mesmo. Alguém afogado na mágoa de se saber só, irremediavelmente preso a uma vida de solidão por incapacidade de ser amado, por sentir que o amor lhe está vedado. Fora de si verá uma barreira tão alta que não consegue transpor. A vontade de dar o seu amor esbarra no desnorte de não encontrar quem o queira receber.
A amargura do desencontro traz a urgência de gritar, com a dor bem aberta de um coração em ferida, que nem sequer o sonho quer acolher. Para não se deixar invadir pela doce, mas ilusória, esperança de que o sonho seja tocável pela pele sedosa dos seus dedos. Os sucessivos desencontros com o passado não deixam lugar a dúvidas. Cansada de sofrer, incapaz de tolerar a incompreensão alheia, desmotivada para continuar a oferecer o melhor de si, desistiu. Demitiu-se do amor, demitiu-se do sonho que dedilha o amor.
Do alto da sua varanda altiva, o acto de ensimesmar. Asceta de si mesma, refugia-se na fortaleza erguida para escapar dos suplícios do sonho. Será uma escada íngreme para cerrar as portas ao amor que o caustica. Será o caminho necessário para se fazer forte, entender que o amor não foi o mote para uma vida adocicada. Antes a causa para tanta decepção, tanto afogueamento doloroso. Compreenderá então que o amor é um acto de desprendimento de si mesma.
O sonho que repudia é o segundo acto deste afastamento. É rejeitar uma vida mergulhada na ilusão de que algum dia tem encontro marcado com o amor que lhe trouxe tanto desengano. Esperar que algum dia a névoa se desfaça para contemplar o tão esperado momento de ser velada pelo amor que andou arredio. Esta pessoa, céptica do amor, nada quer com o mapa dos sonhos. Sabedora de que o roteiro lhe tem trazido descompensações, regurgita todo o fel, deixa-se vencer pela anomia que lhe traz o recentramento na sua pessoa.
A angústia que invadiu esta pessoa desgostosa é arrepiante. Uma lição de vida para quem se esforça por encontrar grandes problemas em pequenos detalhes. Uma lição para quem se quer esquecer que o amor não se compadece com as desventuras da rotina. É a natureza humana que nos faz esquecer daqueles que se desenganaram do amor, por terem sentido a experiência das feridas profundas lavradas pelo desamor. Esta inscrição é uma lição de vida. Para valorizar o amor que, por vezes, parece andar escondido como o sol tapado por uma neblina persistente e incómoda.
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