7.12.04

Brincar aos espiões

Ouço uma notícia sobre o Sistema de Informações e Segurança (SIS), onde se acoitam os espiões do país. Uma notícia qualquer sobre uma polémica devido à demissão de um alto dirigente e da sua substituição por um coronel amigo do ministro da defesa. Ouço, ainda, notas de apreensão: as mudanças anunciam a politização do SIS. Cenário tanto mais perigoso, agora que se aproxima eleições. No meio da turbulência, o país, comovido e preocupado, assiste à higiene interna do SIS.

Esta notícia, veiculada com sinal de alarme social, só inclui minudências. Em vez das pessoas se preocuparem se é o ministro da defesa que tenta controlar o SIS ou se esse controlo era feito por alguém nomeado por um governo socialista, seria mais importante discutir a existência do SIS. Enquadrá-lo no moderno Estado de direito, agora que cada vez mais se invocam as garantias fundamentais da pessoa como domínio inviolável. Ao mesmo tempo que é o próprio Estado de direito que faz tábua rasa dessas garantias fundamentais, espezinhando-as em nome da defesa do Estado de direito numa era de acentuada insegurança mundial.

No contexto nacional, falar de espiões é anedótico. Como se fossemos uma potência mundial, como se pesassem ameaças que ponham em causa a integridade do território, ou a garantia de valores que cimentam a identidade nacional. Teremos espiões a vaguear pela península ibérica, em busca de informações que antecipem qualquer manobra contra a integridade territorial? O simples equacionar da hipótese é patético. De onde vêm os riscos, afinal? Será a onda de terrorismo fundamentalista islâmico que se dissemina por todo o mundo, semeando a incerteza? Responder sim é pretensioso: apesar dos terroristas se multiplicarem como cogumelos, decerto têm outras prioridades que não este sossegado canto plantado na esquina sul-ocidental da Europa.

É por isso que apetece dizer: o SIS é uma coutada onde se aprende a brincar aos espiões. Com duas agravantes que convém não desprezar. Por um lado, uma fonte de desperdício de recursos. Quais serão as missões de elevada importância para a segurança nacional que levam a gastos exorbitantes? Alguém se questionou se as compensações que essas missões trazem chegam para justificar os gastos?

Por outro lado, a questão delicada da existência de serviços secretos no contexto de um Estado de direito. Podem os seus defensores justificar a salvaguarda do Estado de direito como pretexto para serem cometidos atropelos…ao Estado de direito. É uma argumentação que padece do pecado da “pescadinha de rabo na boca”. É como defender a pena de morte como compensação da vida que foi ceifada pelo assassino. Dá a impressão que o Estado se coloca num patamar superior de eticidade, como se fosse possível ver mais alto do que os comuns mortais sobre os quais tem jurisdição. O problema não está apenas na irracionalidade da solução; mais grave é saber que em nome da defesa do Estado de direito se autorizam atropelos às mais básicas regras do Estado de direito. Ou seja, a negação do próprio Estado de direito.

Sem contar que se entra num domínio de arbitrariedade incompatível com um princípio de segurança jurídica que deve andar de braço dado com o Estado de direito. Se os serviços secretos podem fazer tudo e mais alguma coisa em nome de valores sagrados para o Estado de direito, nunca se sabe onde estão os limites da sua actuação, nem é possível desenhar regras objectivas para a actuação dos espiões. Entramos num universo à parte, num Estado fora do Estado de direito.

Intrigante é saber que muitas pessoas são contra a independência do Banco Central Europeu (BCE), mas esquecem-se da existência de espiões. Alegam que sem o controlo de políticos – as pessoas que têm legitimidade política, por serem eleitas – o BCE é uma instituição secreta, que não responde perante ninguém, que pode decidir sozinha sobre assuntos essenciais para o bem-estar geral (taxas de juro, por exemplo). Se se invoca o secretismo que caracteriza o BCE como razão da sua ilegitimidade democrática, o que dizer dos serviços de espionagem? O que dizer dos seus métodos, ao arrepio das mais elementares regras de um Estado de direito (nomeadamente o respeito pela vida humana e pela privacidade dos indivíduos)?

Sinto-me mais seguro com o secretismo dos bancos centrais (até porque emancipa pessoas competentes da tutela de políticos oportunistas) do que com a nebulosa onde estão suspensos os serviços secretos. Desassossega-me saber que as mais elementares garantias individuais podem estar, neste momento, a ser vasculhadas por espiões sem escrúpulos.

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