17.12.04

A nudez contra a utilização de peles de animais

Protestar está na ordem do dia. Contra a prepotência dos poderosos, a sociedade democrática conferiu uma arma de arremesso: o protesto, a manifestação, pacífica ou com laivos de violência. Protestam os sindicatos: querem um mundo cheio de direitos para os trabalhadores em contrapartida de uma ausência de deveres. Protestam os estudantes: querem um ensino que cultive o facilitismo. Protestam os agricultores: para que se mantenha a “segurança social” suportada por quem consome os seus produtos. Protestam os meios culturais: ávidos para sorver mais e mais recursos ao erário público, como se os contribuintes tivessem um dever categórico de subsidiar a produção cultural destinada a elites circunscritas. Protestam os abstencionistas: contra o marasmo, a reduzida qualidade dos actores do processo político.

Protestam activistas dos direitos dos animais: contra os abusos perpetrados em animais indefesos. Tenho que confessar que não sou atreito ao verbo fácil do protesto. Admito que é uma forma de exteriorizar a liberdade de expressão, trave mestra de uma sociedade que reconhece as liberdades individuais. Por razões estéticas, por razões ligadas ao individualismo que cultivo, não sou dado a alinhar em manifestações colectivas que afirmam um descontentamento. Quando o faço, restrinjo o protesto ao meu íntimo. É o que acontece com a tendência sistemática e militante para a abstenção eleitoral.

A excepção seria – se me fosse pedido um contributo – na defesa dos direitos dos animais. Sei que estaria ao lado de sectores que não atraem a minha simpatia – os ecologistas inquinados por uma forma exacerbada de defender as suas causas. Mais importante do que as más companhias seria a nobreza da causa. Vêm de há muito as manifestações que reclamam a proibição do comércio de peles de animais. Utilizam a nudez como arma contra a perfídia de matar animais pelo prazer estético de umas madames endinheiradas.

Há dias, novas manifestações algures na Europa. Apenas vi de relance as imagens: umas modelos com parcas vestimentas, só a tapar o essencial, despertaram a atenção. Desatento – ou, para ser fiel à verdade, concentrado na nudez que desfilava no ecrã – só ao fim de alguns momentos percebei o motivo da manifestação. Elas tiraram a roupa para chamar a atenção da estupidez que é sacrificar a vida de animais sem defesa, apenas para comprazimento pessoal de senhoras que se pavoneiam nos salões da alta sociedade trajando os seus casacos de peles.

Em tempos vi um documentário que explicava como, nas terras inóspitas e geladas do norte do Canadá, caçadores matavam a sangue frio as crias de focas para lhes subtraírem a pele alva. Na retina ficaram os gritos lancinantes das mães foca, no desespero de nada poderem fazer para salvar a vida da cria sacrificada. Testemunhei, com lividez, a frieza atroz dos caçadores, maquinalmente espetando o arpão. Os carrascos de criaturas inocentes que pagam com o preço da sua existência a necessidade de acalentar o ego narcisista de senhoras abastadas.

No final do documentário, o vazio e a revolta apoderaram-se de mim. É por isso que compreendo as manifestações de quem ergue a voz contra a ignomínia de tirar brutalmente a vida a animais para aproveitar as suas peles para os esbeltos casacos. Compreendo-as, apesar da nota folclórica que é indisfarçável. E dou comigo a pensar o que diria se alguém, algum dia, me desafiasse a dar a minha nudez contra as atrocidades cometidas sobre tantos animais. Não sei se a resposta está preconcebida pela certeza de que ninguém se queria aproveitar da minha nudez para o efeito. Ainda que a hipótese se colocasse, não hesitava em concordar. Como não hesitava em aplaudir quem – como vi num filme qualquer – inutilizasse um casaco de peles majestoso com um spray vertendo tinta vermelha.

Nestas ocasiões não consigo reprimir a revolta interior. Vejo-me um militante defensor dos animais. E desafio os que consideram que é na superioridade do ser humano que está a justificação para que os outros animais estejam ao serviço das necessidades humanas. Argumento insidioso, é ele que me coloca mais perto de ser vegetariano. Já esteve mais longe.

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