22.12.04

A eutanásia

Nos últimos tempos tem-se reavivado o debate acerca da eutanásia. Em alguns países os argumentos favoráveis e contrários à eutanásia voltam a ser contrastados. Nesses países discute-se a possibilidade de legalizar a eutanásia em condições limitadas, ainda que sob o manto da legalidade se escape à palavra tão causticada ao longo dos tempos. Em sua vez surge a expressão “assistência na morte”.

Este é um daqueles domínios que ilustra como vivemos enfeudados à ideia de que a vida individual é tutelada por uma qualquer entidade superior ao eu. Seja a deus, seja ao Estado. Somos senhores da nossa vida até a um limite em que a disposição da vida individual choca com os valores estabelecidos na sociedade. É esta a linha de raciocínio dos opositores à eutanásia. Trata-se de uma decisão delicada: um doente em estado terminal deseja pôr fim à sua vida, necessitando de auxílio médico para alcançar o objectivo. No fundo, alguém é chamado a colocar um ponto final na vida de outrem. O que pode levar a um conflito de consciência para quem é chamado a desligar o doente do ténue fio que ainda o mantém agarrado a uma vida periclitante. Mais grave, este acto em que alguém tira a vida a outra pessoa – mesmo que com o consentimento desta, ou de seus familiares – é criminalmente censurável.

São conflitos que colocam em lados diferentes da barricada o doente que anseia por ver a sua vida terminada e a sociedade que zela pelos valores inculcados na maioria. Diz-se que o candidato à eutanásia não tem o direito a dispor da sua vida para dela se desligar, porque isso atenta contra o valor da vida, tão preservado pela sociedade. O argumento seria defensável, não fossem muitos dos países onde se ergue uma cortina de hostilidade contra a eutanásia os primeiros a espezinhar o valor da vida – sejam aqueles onde ainda existe a pena de morte (ou a prisão perpétua), sejam aqueles que não hesitam em atentar contra a vida alheia em nome de guerras duvidosas.

Fico perplexo como se defendem os valores que cimentam a propalada “consciência social”, deitando para trás das costas os interesses de quem quer terminar a sua vida por estar imerso num sofrimento físico e mental ímpar. É fácil exibir o pudor de quem se sente ofendido, ou pelo menos incomodado, quando alguém quer morrer por saber que não consegue viver para além da doença que o definha. É confortável, porque o sofrimento não passa pelo corpo destas pessoas. É fácil ser juiz do sofrimento alheio, estar pronto a lavrar sentenças que repudiam a tentativa de alguém pôr cobro ao sofrimento de viver acorrentado a uma doença que eterniza o momento em que há-de chegar a morte. Gostava de saber se mantinham a mesma opinião se fossem apanhados na armadilha de uma doença letal, traiçoeira, que os acorrentasse a uma vida vegetativa, cheia de sacrifício e indignidade. Gostava de saber se mesmo aí seriam contra a eutanásia.

Sei que os mais cautelosos invocam a necessidade de prever situações obscuras, em que o desejo da eutanásia se confunde com o perverso gosto de um médico terminar vidas alheias sem o consentimento destas pessoas. Como é difícil, noutros casos, obter o consentimento do doente – por não poder exprimir a sua vontade. Por cima de tudo isto estão valores mais elevados. Reconhecer o direito de dispor da própria vida, ainda que o limite se estique e passe a tocar aquilo que está convencionado ser terreno em que o direito individual invade os interesses da sociedade. Para que a pessoa não continue a agrilhoar os seus destinos a decisões que estão fora da sua esfera, como se a vida de cada um pertencesse a todos.

Ao que sei, aos católicos que têm a coragem de cometer suicídio não é reconhecido o direito de sepultura em cemitérios segundo os rituais da religião a que pertencem. Um dos dogmas do catolicismo é de que deus criou a vida, e só deus dela pode dispor. A vida há-de terminar quando deus assim decidir. Na sua bondade, deus deve preferir prolongar o martírio daqueles que já não têm esperança senão a de ver a sua vida findar. Um deus bom é aquele que não tem problemas em eternizar o sofrimento. Dirão os crentes, na sua placidez, que foi assim que deus quis.

Será que numa era de dessacralização temos uma entidade terrena que se substitui à entidade divina que se assenhoreou da vida humana? Podemos dessacralizar a vida em sociedade, mas os vícios de raciocínio estão tão enraizados que iremos continuar a encarar o problema da mesma forma. A eutanásia há-de persistir envolta num pecado: antes religioso, agora social. Mas a ideia de pecado há-de perdurar, nem que seja para alicerçar o poder daqueles que se apossam do Estado para exercer a sua vigilância pedagógica sobre todos nós. Ou de como deus se faz homem...

No rescaldo: um direito tão basilar como o de dispor da vida individual – em toda a sua latitude, abrangendo todos os actos que interessam à vida de cada indivíduo – há-de continuar a ser negado, para as consciências que se sentem ofendidas poderem repousar descansadamente todas as noites. Ignorando que, nesse mesmo momento, algumas pessoas vivem o tormento da condenação à morte sem saberem quando, eternizando um sofrimento que só elas sentem. Eis o altruísmo social em toda a sua magnitude!

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