3.12.04

Confusões sublimes: “lava-te porco” num vidro de um automóvel

Andar às voltas para estacionar o carro quando vou trabalhar tem as suas compensações. Quando mais não seja, por ter arranjado tema para hoje. Lá andava, como às vezes sucede, com o olho aguçado à procura de uma nesga para estacionar. Ao fim da rua, o semáforo passou para vermelho. Havia alguns carros parados à espera da mudança do semáforo. Quando parei, do lado esquerdo estava um carro encardido, tanta era a sujidade acumulada. No vidro de trás, a inscrição manuscrita: “lava-te porco”.

Quem nunca deparou com inscrições do género em carros impregnados de sujidade? O insólito estava na mensagem escrita pela pessoa atenta a estas coisas da higiene alheia. Noutras ocasiões este tipo de avisos surgia com outra forma: o pronome pessoal após o verbo “lavar” costuma ser o “me”, não o “te”. Quem se atreve a deixar a aviso no vidro de um automóvel de outrem passa por estar a falar em nome do veículo que não vê água há meses. Em vez do “lava-te porco”, aparece um “lava-me, porco”.

Fiquei curioso em deslindar o equívoco da altruísta pessoa que quis lembrar o dono daquele carro que a lavagem era urgente: será que queria falar em nome do automóvel, e apenas se enganou no pronome pessoal acoplado ao verbo “lavar”? Pode ter acontecido que a alma caridosa tenha querido dizer “lava-me, porco”, como se estivesse a falar em nome do carro dirigindo-se ao seu dono, mas lhe tenha saído um “lava-te porco”. Sem dar conta, atraiçoado pelo pronome pessoal usado, aquela pessoa estaria a falar consigo mesma, vendo retratado no carro a falta de higiene de si mesma?

É fácil cair no alçapão das palavras. Principalmente quando usamos palavras que podem ter múltiplos sentidos, e temos a infelicidade de usar um jogo de palavras que revelam o sentido menos desejado pelo discurso. A semântica prega partidas de que é difícil sair (quando se detecta a gaffe). Recordo-me, numa aula, de tentar explicar determinado aspecto utilizando a técnica do “por outras palavras”. Só que em vez desta expressão saiu-me o “trocando por miúdos”. Na ressaca dos primeiros momentos do escândalo Casa Pia, aquela expressão teve uma ressonância diferente. Só depois das palavras se terem soltado é que dei conta, ao mesmo tempo que os alunos, como aquela expressão passava a figurar no rol de expressões a evitar.

Volto à pichagem no vidro do carro. A pessoa que se deu ao trabalho de avisar o proprietário do automóvel foi atraiçoada pelas palavras. A simples troca do pronome pessoal foi a razão da traição. Não é crível que esta pessoa estivesse ciente de que o carro pode meter as pernas ao caminho por sua livre iniciativa e dirigir-se a uma lavagem. Logo, não faz sentido que a mensagem tenha o carro como destinatário. Portanto, quando a diligente pessoa escreveu “lava-te porco”, estaria longe de perceber que a mensagem, tal como apareceu escrita, só podia ter como destinatário ela mesma. Talvez fosse uma reacção instintiva: ao ver como o carro estava tão sujo, e por saber que ela mesma estava longe do asseio desejável, o subconsciente tê-la-á empurrado a escrever no vidro do carro aquilo de que ela necessitava com urgência. Quanto mais não seja porque ao ter o trabalho de escrever aquela mensagem com o seu dedo, a mão ficou impregnada de sujidade.

O semáforo ficou verde. Percorro nem cem metros e, do outro lado do passeio, destacam-se quatro enormes bostas. Como não é local de pastagem de bovinos, deitei-me a adivinhar que a proveniência só podia ser equídea. Como os cidadãos comuns não trazem cavalos para a cidade, os dejectos só podiam vir das patrulhas a cavalo da PSP. Não vou entrar em pormenores escatológicos. Apenas digo que o panorama não era agradável – e menos o seria para os transeuntes que calcorreassem aquele passeio.

Quando há campanhas que alertam os donos de cães para a necessidade de recolher o que os animais soltam dos intestinos, para evitar que quem anda pela rua tenha surpresas desagradáveis que trazem um odor pestilento aos seus sapatos, o que dizer deste desplante da PSP? Não será um mimo de higiene, decerto. E ilustra uma regra do agrado do Estado: um peso, duas medidas. O que os cidadãos não podem, pode o Estado com toda a latitude. Se um cão depositar os dejectos na via pública, o dono sujeita-se a multa caso esteja a ser observado por um zeloso agente da autoridade. Mas duvido que esse agente da autoridade teria a coragem de multar os seus colegas ao ver os cavalos a soltarem a abundante bosta para o meio do passeio.

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