15.12.04

Copiar é uma arte

Saio da universidade, num intervalo entre aulas. Dirijo-me para o portão e vejo, ao fim da descida, quatro alunos parados em alegre conversa. Como estavam de costas, não se aperceberam que me aproximava. Ao passar por eles, pude apanhar uma parte da conversa:

- Que achas?

- Não é difícil. Ainda por cima o Prof. põe-nos à vontade. Com este é fácil copiar.

O passo apressado apenas deu para captar esta parte do diálogo. Deixei o portão para trás, atravessei a rua e dirigi-me ao carro. Meia dúzia de metros antes do sítio onde o tinha estacionado, alguns pequenos papéis espalhados pelo chão. Detive-me, por breves momentos, porque sentia ter alguma familiaridade com aqueles papéis. Eram “auxiliares de memória” que já tinham prestado a sua função a um aluno mais preguiçoso.

Os papéis eram-me familiares: já por várias vezes encontrei coisas do género perdidas negligentemente no chão, ou mesmo de forma provocatória deixados junto a caixotes de lixo em salas de aula. Pequenos rectângulos de papel, letra minúscula a exigir uma boa lupa, convocando as possibilidades tecnológicas do momento: o processamento de texto dos computadores que permite redigir em letra pequena, a que se junta a possibilidade de realizar fotocópias reduzidas que acobertam os copianços da vigilância zelosa dos professores.

O terceiro acto: horas mais tarde, quando regressei para uma aula. Ao expor a matéria gosto de estender as pernas, caminhando de um lado para o outro da sala. Quando a configuração da sala o permite, estico-me ao longo da sala, percorrendo o corredor central que separa as duas fileiras de carteiras. Foi num destes momentos que reparei nas costas de uma cadeira diligentemente preenchidas a lápis com dizeres que tinham algo a ver com uma disciplina da área da sociologia. A criatura autora dera-se ao trabalho de ocupar uma sala, antes do teste ter lugar, e com paciência de chinês deu uma nova aparência às costas da cadeira. Adivinho que o fez com a cumplicidade de alguns colegas colocados à porta da sala, não fora acontecer que um contínuo irrompesse sala adentro e abortasse a tarefa.

Costumo dizer aos meus alunos que copiar é uma arte. A ciência está em saber – e conseguir – enganar o professor. É um domínio em que a imaginação fértil é um instrumento que os coloca na senda do sucesso. Por mais atento que este esteja, é impossível vigiar uma sala com dezenas de alunos a fazer um exame. Não sou daqueles que percorre ansiosamente a sala em busca dos infractores, criando um clima de terror psicológico que amedronta os que querem infringir e aqueles que nada têm a temer. Até acontece que por largos momentos me alheio da audiência, passando os olhos por um livro que me acompanha em vigilâncias de exames. É aí que os pequenos papéis começam a espreitar entre mangas de casacos, entre a folha de rascunho que o esconde, nas pernas que se entreabrem para destapar os milagrosos papelinhos.

Só me aborrecem aqueles alunos que o tentam fazer de forma descarada, descuidada. É nesses casos que pratico a minha vingança. Deixo-os provar o fruto proibido, permito que eles achem que me estão a enganar. Deixo-os imersos na convicção de que o sucesso está ali ao virar da esquina. Quando a coisa passa a ser flagrante demais, acerco-me do artista e exijo que entregue os “auxiliares de memória”. De seguida, marco na folha de teste o momento em que o aluno foi apanhado e informo-o que tudo o que escreveu até aí não conta para efeitos de avaliação. Só o que vier daí para a frente será corrigido e avaliado. Na maior parte dos casos, ao fim de alguns minutos entregam a folha de teste e declaram desistência. Acabam por ter sorte: seria mais humilhante aparecer na pauta a menção “anulado” do que a informação de “desistência”. Eis a dimensão da minha generosidade…

Isto no dia em que na sala de professores encontrei uma colega – daquelas que irrita o mais pacato – a perorar sobre a geração perdida que se senta diante de nós nas salas de aula. Já não é a primeira vez que ouço lições de moral da boca da senhora. Hoje indignava-se contra o matraquear (porém silencioso) nas teclas de telemóvel quando, a meio de uma aula, um aluno decide responder a um SMS. Com um sentido de humor duvidoso que vai fazendo escola naquela casa, exige que o aluno se aparte do “tamagochi”. Por, nas suas palavras impregnadas de uma moralidade acima da média, o aluno perturbar a atenção dos colegas e da própria professora.

É nestas ocasiões que prefiro um aluno matreiro, preguiçoso, desinteressado, com tendência para a infracção. É mais fácil aturá-lo do que estes pregadores de moral que se incomodam com a ínfima coisa.

1 comentário:

Milu disse...

Li este seu texto com atenção e de certa forma divertida. Quando se é jovem, é-se jovem, logo todos estes procedimentos, isto é, a utilização de cábulas pelos alunos, deve de ser considerada normal e esperada.Nos meus primeiros tempos de escola nunca utilizei cábulas. Eram os tempos da régua, por isso os alunos aprendiam tudo o que era ensinado nas aulas! Pudera! Ainda assim experimentei vezes de mais a violência dos professores e conheci muita injustiça. Anos depois, já adulta, fui estudar à noite. Nunca utilizei cábulas. E para que me serviriam se eu gostava de aprender? O que mais gostava era de expor as minhas dúvidas, e com isso ter a oportunidade de aprofundar ideias ou conhecimentos com os professores, logo, aprendia a matéria. No entanto, com o meu filho já assim não foi. Houve um ano lectivo em que nem sequer abriu os manuais escolares, ao menos uma vez! No fim desse ano ainda cheiravam a novo, quando os guardei! Educado, respeitava os professores, mas foi sempre desinteressado das actividades escolares. Queria ele lá saber daquilo! Ninguém conseguia convencê-lo a interessar-se, fosse pelo que fosse! As faltas às aulas foram sempre muitas! Todavia, aprendia sozinho. Em casa, passava horas incontáveis defronte do computador, a pesquisar no google, onde adquiriu bastantes conhecimentos que hoje executa, como por exemplo, a administração de servidores e que tem desenvolvido, mantendo até um pequeno negócio. Como não poderia deixar de ser aprendeu, também, a língua inglesa, por esta lhe ser indispensável para as suas actividades. Mais um que nunca utilizou cábulas, mas, no caso dele, terá sido por inabilidade e, também, porque não? Por uma questão de honestidade - se sabe, que não sabe - para quê querer enganar seja quem for? Todos os dias observo que não é com honestidades que vencemos na vida, ainda assim constatar este facto em nada me aflige, se há tanta coisa que eu não sei! Sei lá o que é melhor, ou talvez saiba!Um dia destes vou-me deste mundo, o melhor mesmo, penso, é viver a vida como me apetece, quero lá saber se estou certa ou errada!