A perene tarefa de ser pai: educar os filhos no espírito da quadra natalícia. Um dilema que surge. Entre as convicções pessoais, dominadas por uma inexplicável tristeza que me invade na quadra, e os outros 50% da sociedade familiar que se querem manter arreigados ao espírito tradicional do natal. No fio do arame, entre a desmistificação do natal como nos é vendido, e a necessidade de sermos elos, pequenos elos, perpetuadores da tradição natalícia. Imagino as consequências das opções. Levar por diante a vontade pessoal, sabendo que os filhos estarão num mundo estranho quando forem postos em contacto com outras crianças, elas tributárias do “natal-como-deve-ser”. Ou sucumbir à maré, deixar que os filhos se enredem no mundo faz de conta que tem a sua expressão máxima no natal, no conforto de não os votar ao ostracismo social.
Depois, num esforço interior, tentar contar às crianças o que é o natal (modalidade pagã, apenas). Levá-las a acreditar no famigerado pai natal, essa pretensa invenção da Coca-Cola. O velho barbudo, que mantém residência algures na distante Lapónia (não esquecer de apontar a dedo a localização no mapa), explicar porque traja de vermelho e enverga farfalhuda barba branca sem que ambos os sinais um resquício do fantasmagórico marxismo…
Ensinar-lhes que o pai natal viaja de trenó, movido a energia de rena milagrosa – umas renas que só existem perto do pólo norte, que se distinguem na fauna animal por serem os únicos quadrúpedes que conseguem voar sem terem asas. É preciso explicar-lhes o significado do dom da ubiquidade. Uma derivação metafísica impõe-se: fazer-lhes ver que as pessoas só podem estar num sítio de cada vez, que a nossa matéria não se pode pulverizar em múltiplas partículas para estarmos em muitos sítios ao mesmo tempo; o pai natal é diferente. Que, à semelhança de alguém que se chama deus, consegue estar presente em todo o lado ao mesmo tempo, milagre cósmico que faz chegar as prendas ansiadas a todos os lares em função da abundância material. Ou, numa versão adaptada ao mundo moderno, notar que ubíquo só o tal deus, que o pai natal é uma entidade plural, uma espécie franchisada com representantes em todos os países, em todas as cidades, em todas as vilas e aldeias.
Na necessária socialização das crianças em infantários e escolas, mais difícil se torna escapar à questão do espírito natalício. Entre o politicamente correcto e os malefícios do consumismo globalizado, há todo um vasto oceano de diferenças de difícil harmonização. Por mais que vingue a convicção que o verdadeiro espírito natalício é o que cultiva sentimentos e não a posse de coisas, temo que este exercício seja remar contra uma maré poderosa. Um pai não pode contra um exército de pequenas crianças que convivem com os filhos. Nada pode contra as ondas alterosas que inculcam nas crianças a convicção de que natal é o momento em que são invadidas por um enxurrada de prendas.
É um lugar comum censurar o espírito natalício subvertido pela febre consumista. As crianças são levadas a interpretar o natal pelo termómetro das prendas. Quanto mais recebem, mais os ofertantes delas gostam. O fenómeno vem de trás e cultiva o efeito bola de neve. As crianças de hoje foram habituadas no fervor consumista, que tem o seu expoente máximo no natal. Quando as crianças de hoje se transformam nos pais de amanhã, há a transmissão espontânea do comportamento materialista.
Diria que é genético. Mas não diria que é uma subversão do espírito natalício, ou sequer a materialização das relações humanas, como alguns profetas da desgraça sugerem. Porque, no fundo, receber é a contrapartida de dar. Há algo de pedagógico nisto. As crianças devem ser educadas na arte de receber. E de preferência, receber com generosidade. A pedagogia paternal divide-se em dois actos: ser generoso, mas fazer ver que é a generosidade possível dentro das condições materiais que existem. Este é o espírito que fermenta nas crianças, adultos de amanhã, a predisposição para a troca, para serem elas mesmas generosas quando chegar o seu momento de oferecerem. É o natal ao serviço do capitalismo – e, como sempre, o capitalismo ao serviço do bem-estar da humanidade.
A hipocrisia que desdenha do natal consumista deve ser denunciada. Tenta educar as crianças no espírito descomprometido do natal, inculcando que é agora, mais do que nunca, que os laços familiares se devem estreitar, que as pessoas devem ser atreitas a fazer o bem. Suprema hipocrisia. Como se isto apenas fosse emergente no natal, e se pudesse esquecer durante os restantes dias do ano.
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