Convém não generalizar: nem todos os ex-fumadores se esquivam à responsabilidade pessoal. Só aqueles que, mercê da doença que levou parte da traqueia num maldito cancro, querem obter chorudas compensações das empresas tabaqueiras. A moda começou nos Estados Unidos. Clinton forçou um acordo entre as tabaqueiras e as associações de ex-fumadores para que as primeiras pagassem milionárias indemnizações às pessoas vitimadas por anos a fio de consumo de tabaco. A moda contagiou-se ao outro lado do Atlântico, já tendo chegado a Portugal.
Os comportamentos pessoais que visam sacudir a água do capote, passar um esponja por certos actos praticados no passado, são deploráveis. Enxotar a responsabilidade para os ombros de outrem, como se a pessoa alheia aos actos fosse a primeira responsável por eles, não abona em favor de que assim actua. Os ex-fumadores que tiveram a desdita da doença lancinante que os diminui para todo o sempre; as pessoas que tiveram ainda mais azar e viram a vida ceifada pelo consumo do tabaco; os familiares de quem já partiu, que juram vingança – todos formam uma amálgama que pretende passar uma esponja pelo passado. Querem responsabilidades das empresas que acenavam com o vício do tabaco. Julgam que as tabaqueiras os envenenaram num trágico beijo de morte (para os mais infelizes) e de incapacidade (para os que ainda se mantêm vivos).
Actuam como se fosse possível crer que, enquanto fumadores, eram simples autómatos. Ao exibirem a sua revolta contra as tabaqueiras, os ex-fumadores querem passar uma mensagem bem clara: enquanto foram fumadores não podiam assumir responsabilidade pelo acto de sacar um cigarro, puxar do isqueiro, acendê-lo e degustá-lo até ao filtro. Tudo se passou como se andassem hipnotizados pelo vício tabagista, exangues de livre arbítrio. É o cúmulo da desresponsabilização pessoal: querer atirar as culpas dos actos individuais para alguém que está fora da sua esfera.
Quando vejo as associações de ex-fumadores a clamar por justiça, e quando me lembro da onda higienista que varre o mundo – sempre pronta a impor comportamentos, com gentileza a apontar os “caminhos do bem” – cresce a inquietação. Primeiro, porque há juízes que são o alicerce deste “higienismo” social que se enraíza, lançando as bases para o ostracismo dos que desalinham. Depois, porque as pessoas começam-se a aperceber que vale a pena provar o fruto proibido: sabem que a jusante alguém há-de suportar as suas responsabilidades. Por fim, esta mania pode abrir precedentes perigosos. Pode lançar a ponte para que o mesmo aconteça noutras áreas, sedimentando a ideia de que não somos senhores da nossa vontade porque, por conveniência, acreditamos que ela é comandada por uma qualquer entidade com forças superiores às nossas. É um simples pretexto para fugirmos da culpa própria. O amesquinhamento de cada um que lança as culpas para outros, na confissão pública de seres que de tão pequeninos não merecem a maioridade social.
Estou a adivinhar futuros actos desta maquiavélica encenação. Também a sinistralidade automóvel faz muitas vítimas. Também aqui os actos individuais importam acima de tudo (descontando os defeitos das estradas, a má formação com que saímos das escolas de condução, etc.). Vai demorar muito tempo até que as vítimas de acidente de viação (e seus familiares) comecem a inundar os tribunais com processos para extrair lucrativas indemnizações dos fabricantes de automóveis? Afinal são eles que, com o avanço da tecnologia, fazem carros mais rápidos. A velocidade é um convite irrecusável às sensações fortes. Os culpados são os fabricantes de automóveis que deviam pôr um travão na performance dos carros. A lógica é a mesma dos ex-fumadores que querem sacar dinheiro às tabaqueiras.
A eito, uma convicção que se reforça: quando tanto se quer confiar na vontade de cada cidadão como base de uma responsabilidade colectiva que é o património do que somos, como justificar a responsabilidade colectiva se fugimos a sete pés da responsabilidade individual? É a rábula de construir uma casa começando pelo telhado: tarefa impossível. Acobertamo-nos nos outros, nessa coisa abstracta que é o “Estado”. Na falta de discernimento para assumir as responsabilidades dos actos individuais, virá o Estado, entidade sempre paternalista, colocar a mão no nosso ombro para aquietar as más consciências. No rescaldo, o que se vê: a apetência para endossar a responsabilidade de cada um para todos os demais; a demissão de cada eu como eu diferente do outro.
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