Detenho-me por uns momentos nas macabras imagens que não param de chegar desde as longínquas terras afectadas pelo maremoto de anteontem. Fico aturdido com a sucessão de imagens de destruição, com o amontoado de corpos que jazem depois de tragados pelas águas revoltas, com os relatos sofridos de quem teve a sorte de escapar com vida à tragédia. As televisões vão passando imagens captadas por vídeo-amadores: retratam a onda assassina que irrompeu terra dentro, numa fúria avassaladora que não teve contemplação com vidas humanas e o que estava construído.
Vistos de cima, parece que estes locais foram devastados por uma bomba mortífera que nada deixou de pé: edifícios esventrados, árvores de porte arrancadas pela raiz como se fossem brinquedos amovíveis, automóveis empilhados numa estranha coreografia de estacionamento desordenado; e, o mais doloroso, os corpos que se perfilam lado a lado, ora ensacados e prontos para a sepultura, ora ainda a céu aberto, numa ordenação caótica. Uma macabra elegia à terrífica natureza que espalhou, com duas ondas carrascas, um manto pérfido de morte e destruição.
O número de vítimas não pára de crescer. Duzentos, mil, cinco mil, vinte mil, cinquenta mil mortos. Hoje de manhã, a informação de que pode ir além de cem mil mortos. A horrível contabilidade aumenta numa dimensão dantesca. Cresce numa proporção geométrica, como se a cada dia que passa a escalada eleve a bitola para além do imaginável.
Vistas as imagens, imaginados os momentos de aflição indescritível, diria que a natureza se zangou com a humanidade e quis mostrar toda a sua fantástica força. Comprimida num colete-de-forças, soltou-se e, num arremedo de raiva, soprou com uma violência inaudita a sua força explosiva. O tremor de terra semeou as mortíferas ondas de choque que percorreram o Índico e só pararam quando encontraram um leito de morte para repousar. A violência dos elementos teve a sua acalmia quando encontrou terreno para ceifar vidas e destruir a obra laboriosamente construída pelos humanos. Só então esta onda assassina se apaziguou da sua raiva interior, escolhendo os milhares e milhares de vítimas como réus necessários da sua cólera.
Aprendemos que a vida é feita de contrastes. Que vamos de um extremo ao outro num instante, com um simples estalar dos dedos. Esta tragédia é o espelho deste ensinamento. Locais que eram conhecidos por estarem próximos do éden terrestre estão agora mergulhados no caos, devastados, transformados num cemitério a céu aberto. O outrora paradigma do paraíso é hoje a imagem acabada do que pode ser o holocausto plantado em poucos minutos. A natureza mostrou toda a sua força incontida. O desrespeito por tempo acumulado de obra feita, de tanto suor derramado, que num ápice é varrida do mapa por uma onda alterosa, violência personificada numa força natural. Num instante, a natureza transformou o suor humano acumulado em anos de labor no sangue derramado que tolheu vidas numa dança macabra e aleatória.
O descanso de inocentes que repousavam nas praias idílicas; as artes de uma população sacrificada por provações; as famílias destruídas, como se todo um passado deixasse de fazer sentido – tudo a onda assassina varreu, impiedosa, na sua vingança indiscriminada contra quem teve a inditosa sorte de estar no local errado no momento errado. Natureza cega, insensível, bolsa de forças incontroláveis, saciada com o sacrifício de vidas humanas. Uma natureza terrífica, expoente máximo do bom e do mau: a mesma natureza que foi pródiga em doar estes locais com uma aura paradisíaca quis, arrependida, tirar esse dom com as ondas gigantescas e mortíferas que semearam um mar de destruição, um odor tétrico de morte.
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