18.4.07

Amizade colorida


Mote: “A amizade é o amor sem asas”, Lorde Byron

Ensaio a exegese da frase de Byron, uma citação que saiu há dias no almanaque. Desconheço o contexto em que a frase aparece. Por isso, pode acontecer que o ensaio exegético adultere o significado da sentença lavrada do punho do escritor inglês.

Quando leio que a amizade é o amor sem asas, a primeira coisa que me ocorre é que o sexo é o animal alado que apimenta a relação. É um grau menor na intensidade dos afectos, ao estar desprovido das asas que alcançam voos inatingíveis pela simples amizade. Se Byron estiver certo, é caso para dizer: ainda bem que a amizade é o animal assisado. Senão éramos todos bissexuais. Senão a igreja já teria desaparecido, ou ter-se-ia reconvertido à força perante as evidências da promiscuidade instalada (e aí desaparecia farto motivo de risota, por ausência do ridículo que costuma cobrir a igreja quando perora sobre os costumes dos outros).

A Byron escapam alguns aspectos que desmentem a sua asserção. Primeiro, parece que amor e amizade são compartimentos estanques. Que um exclui o outro. É mais fácil que o seja quando nutrimos amizade por alguém. Aí sim, o terreiro da amizade é sinal de que não há lugar ao amor. Aliás, há amizades que são estragadas quando uma das pessoas perturba os sentidos e ambiciona atingir o degrau acima, o degrau do amor. Quando a outra pessoa anda descompassada, veda-se o amor e sobra a amizade toldada. Mas Byron sugere que o amor vem desligado da amizade. E não é verdade que o amor mais intenso povoa a amizade? Que existe uma simbiose entre amor e amizade, que é impossível distingui-los?

Por outro lado, há as amizades coloridas. Não sei se à data em que Lorde Byron viveu, os costumes ainda não tinham incorporado o hábito das amizades coloridas – daquelas amizades que franqueiam as portas a uma relação corporal mais íntima, sem chegar ao ponto dos amantes se considerarem abraçados pelo manto diáfano do amor. A educação católica que recebemos, a juntar aos hábitos conservadores que tingem a sociedade em que vivemos, fazem da amizade colorida terreno de excepção. Os padrões educacionais orientam os comportamentos na rota da separação entre amizade e sexo. A menos que o conservadorismo seja varrido para debaixo do tapete e vingue algum pragmatismo. Aí a amizade acolhe o envolvimento dos corpos. Então Byron está enganado: também as amizades podem ter as asas que ele prescreve serem exclusivo do amor.

A sentença do escritor perde validade. Ou perde-se nos caminhos da contemporaneidade, com a alteração dos hábitos que trouxe os prazeres carnais para o domínio da amizade. A frase de Byron perde o valor de imperativo categórico. Uma vez mais, para desprazer dos que gostam de colocar tudo em compartimentos hermeticamente selados, temos que relativizar. E a relativização retira a verdade absoluta à afirmação do escritor. Se em alguns casos a amizade não vem alada, noutros ganhou o travo apimentado do sexo.

Só estou aqui para registar a falácia de Byron, possivelmente devida à alteração de costumes. Entre nós, será ainda hábito pouco enraizado. Talvez nos meios urbanos, mais entre as elites que à partida têm outra abertura de espírito, com certeza entre os mais jovens e entre aqueles que privilegiam o hedonismo. As vanguardas são os expoentes do experimentalismo, em tudo na vida. De repente ocorre-me isto pela recordação de um livro de Alçada Baptista (“Os nós e os laços”) onde a amizade colorida era retratada com pormenor. O autor é conotado com os meios católicos. Não está entre as facções mais beatas e conservadoras de costumes, mas ainda assim pertence ao meio católico, por definição pouco propenso a usos adulterados pelo pragmatismo hedonista. O que acaba por surpreender pela descrição de um imaginário urbano e intelectual, um núcleo de amigos de longa data entrados nos quarenta que cultivava com desassombro a amizade colorida. Afinal não é um exclusivo das gerações mais novas, que travam contacto com outras culturas onde o avanço dos costumes traz uma lufada de ar fresco ao quarto esconso e bafiento. Mas, e daí, a surpresa é aparente: porque o romance era protagonizado por personagens que viveram intensamente o Maio de 68. Como é sabido, no Maio de 68 (e no movimento hippy que lhe foi contemporâneo), a mudança de costumes foi radical.

Se Byron vivesse no século XXI, teria que refazer a frase que deu o mote a este texto. Eis a beleza do tempo que se sucede. Nada fica imóvel: as coisas, as pessoas, os comportamentos vão-se transformando. Não interessa ajuizar se é para melhor ou para pior. Só interessa dar conta que este é um mundo que se move.

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