17.4.07

O mito da passadeira vermelha


Passo ao lado da Casa da Música e vejo estendida uma longa passadeira vermelha degraus abaixo, até ao cinzelado e gélido chão. Haveria de estar marcada cerimónia de gala, a atestar pelo desembaraço da passadeira vermelha que engalanava o mirífico mastodonte que afeia a Rotunda da Boavista. Desprezo os pormenores da arquitectura, do urbanismo, das finanças da prodigalidade. Os olhos detiveram-se na passadeira vermelha, durante os mesmos segundos em que o semáforo zunia a mesma cor.

Pareciam longos, esses instantes de retenção do carro. Os olhos só fitavam a passadeira vermelha. Tão importante seria que estava protegida por uma fita proibindo o acesso, vigiada por um segurança privado que dissuadia aqueles que quisessem experimentar o solo acetinado da passadeira vermelha. Depois soube: a Casa da Música celebrava o segundo aniversário. Daí a solenidade, a condizer com a gravidade do momento em comemoração.

Porque gostamos de ornamentar momentos especiais com adereços que nutrem o simbolismo? É a passadeira vermelha, como a fatiota de gala reservada para momentos singulares, como o aformoseamento do espírito para efemérides pessoais, ou as paradas militares que enaltecem o garbo da lusitanidade, ou os curas trajados a preceito para ungir novas obras com a água benta que as diviniza. Ou os néons que excitam a vista dos comensais numa gala qualquer, dando o beneplácito ao glamour que a ocasião convoca. Antes de lá chegar, os pés dos privilegiados são massajados pela suavidade da passadeira vermelha. Diria que sem a passadeira vermelha a franquear a passagem aos protagonistas, eles sentir-se-iam órfãos da sua visibilidade. A passadeira vermelha é um arcaísmo que remete para a socialização forçada a que somos instruídos.

Será o garrido da cor que compõe a disposição dos convidados à celebração? Será um afago do ego dos emproados figurões que levitam os corpos pela passadeira vermelha? Ou o vermelho da passadeira compassado com o narcisismo das personagens mediáticas exultantes com o bruaá que os aspirantes e admiradores fazem do lado de lá dos gradeamentos, naqueles tão curtos centímetros entre a fama e o anonimato? O que será, não sei. Só a certeza que este símbolo me é indiferente. Não sei se pela desavinda condição com o carmim espalhado pelo chão, não sei se por evocar tolas figuras correndo para os braços da iconoclasta deusa da vacuidade.

A passadeira vermelha ali está, horas estendida para ser pisada pelas celebridades. A maior das humildades de um objecto inanimado. Que, contudo, embeleza a pré-cerimónia. Sem a passadeira, os convivas sentir-se-iam ultrajados no público reconhecimento de que se julgam credores. Terei encontrado o simbolismo da passadeira vermelha? Será a gratidão que os comuns dos mortais exibem perante as celebridades que se destacam da mediania, elas um farol para iludir as vidas tão cinzentas que a modorra diária compõe? O vermelho que irradia é quase incandescente, visível à vista desarmada a longas léguas de distância. Como se, no momento da entronização dos figurões, tudo se resuma àquele ponto do universo onde as pessoas inacessíveis desfilam emprestando brilho ao certame.

Vista do espaço, a passadeira vermelha é uma estrela que cintila a luz feérica dos predestinados. Vista do espaço, aquela estrela que condensa a lápide dos famosos brilha com uma intensidade que só a aglomeração de figuras célebres autoriza. Um microcosmos que escapa à gangrena que lateja em redor. Os figurões olham com desdém para o povo que os aclama. Alguns deles saberão porque o fazem: também estiveram do lado de fora, também em tempos sonharam com a ascensão que parecia apenas um sonho inatingível. O auge tinge-lhes a têmpera. Esquecem o passado onde vegetaram e glorificam a sorte que não quis ser madrasta. Mas, no fundo, neles está a mesma carne pútrida e o mesmo odor fétido que sacodem quando os admiradores chegam muito perto.

O brilho consular da passadeira é um anestésico que todos tomamos – os figurões, os que exercem a função de seus adoradores, os outros (pela formatada educação). Mas de anestésico não passa: o vermelho esconde, apenas e só, o lixo varrido sob o tapete. Das catacumbas do teatro faz-de-conta, a espuma sanada descobre o lixo amontoado. E então fica tudo desnudado, e todos os corpos são feitos da mesma matéria. Mesmo os que passeiam, de ar triunfal e tudo, nos carris da passadeira vermelha.

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