Não estou a pensar nas soluções artificiais que corrigem narizes excessivos ou acrescentam umas bolas de silicone a peitos minguados. Nem sequer àqueles sinais corporais de nascença, que desfeiam o corpo mas são incorrigíveis – um sinal negro na face, uma boca grande, os dedos dos pés que negam a estética. Há lugares do corpo que se prestam aos cuidados, da alimentação e do exercício físico. Confesso a minha obsessão: a barriga.
Já carreguei uma pança proeminente, nos tempos em que havia o desleixo do exercício físico e um animalesco descuido com a boca, mais na comida e não tanto na bebida. Nesses tempos não posso dizer que fosse desmazelado com o aspecto exterior. Fazia os possíveis por esconder a adiposa barriga que me acompanhava para todo o lado, pois nela não havia orgulho. A preguiça do corpo e a gula aguçada falavam mais alto quando me olhava ao espelho e acenava a cabeça, em tom de auto-reprovação, pela saliência que o reflexo mostrava quando me punha de perfil. Até que me cansei de carregar a pança e tratei de a emagrecer. O rescaldo foi nítido: os excessos adiposos quase foram banidos e conquistei uma dependência do exercício físico que ainda não percebi se é salutar ou, como qualquer dependência, viciante.
Há uma primeira interrogação: adelgaçamos o corpo, esmeramos a estética no que pode ser transformado pelo esforço físico, e fazemo-lo para comprazimento pessoal ou para agrado alheio? Eis uma nótula de narcisista egoísmo: faço-o para me sentir bem comigo mesmo, quando os olhos não resistem à tentação de espreitar o que o espelho mostra à saída do banho matinal. Sei que há quem o faça para satisfazer demandas de outrem. Quer da pessoa que partilha os momentos mais íntimos, quer das ainda anónimas pessoas que hão-de cair no regaço após apaixonadas conquistas ou devaneios momentâneos. Desconto esta possibilidade no esforço de apaziguamento com o corpo. Concedo, num resvalo lírico: o corpo não é vital para o pulsar do amor. É importante, mas falta um pequeno nada para chegar a ser vital.
Daí que a insistência no cuidado corporal entre no domínio do pessoal. Apenas uma exigência íntima, para que o corpo não seja uma fonte de mau estar interior. Poderá haver contradição, pois há pouco afirmei que o corpo não é vital para o pulsar do amor. Os afectos conquistam-se pela substância do ser, não tanto por aquilo em que ele vem embrulhado. Diferente é o olhar que temos de nós mesmos, quando fitamos o espelho. Imagino que flácidos corpos se transcendam na necessidade de conviver em paz com excessos adiposos. Quem o faça está a mostrar, por outros padrões estéticos, que vive pacificado com o seu corpo. Não interessa se é uma falácia, ou genuíno sentir. De uma forma ou de outra (aceitando a adiposidade, ou vivendo em conflito interior por causa dela), os corpos que temos não são desprezíveis.
Depois emerge uma segunda pergunta: cultivamos o exercício físico pela estética corporal ou pela terapia da saúde? Há algo de sacrificial quando o corpo se entrega ao exercício físico. Apetece glosar o filósofo grego Juvenal: “é preciso castigar o corpo para conhecer a alma”. Descontado o excesso da punição física, o exercício físico contém algo de purificador. Facilita a exegese do ser. Quando o exercício se torna rotineiro, e a fase inicial de sacrifício é ultrapassada, há nele a depuração do interior: passamos a conhecer os limites do corpo e é mais fácil, durante o exercício, ordenar as ideias. Sem contar com o efeito terapêutico, que previne maleitas modernas e prolonga a esperança de vida. Se o corpo se adelgaça e contenta os padrões estéticos, trata-se de um efeito colateral.
Hoje sinto-me como um drogado que confessa estar agarrado à droga da sua predilecção: só falta trazer comigo uma fita métrica para anotar os centímetros que a cintura mede. Preocupa-me a obsessão. Ponho-me de perfil e olho para o espelho em busca de uma curva mais saliente que escorrega dos músculos abdominais. A certa altura, dou comigo a negar a teoria. E o exercício físico, na sua viciante dependência, começa a ser um instrumento para a harmonia corporal. Se calhar devo ser mais asceta e cultivar os prazeres do espírito.
Já carreguei uma pança proeminente, nos tempos em que havia o desleixo do exercício físico e um animalesco descuido com a boca, mais na comida e não tanto na bebida. Nesses tempos não posso dizer que fosse desmazelado com o aspecto exterior. Fazia os possíveis por esconder a adiposa barriga que me acompanhava para todo o lado, pois nela não havia orgulho. A preguiça do corpo e a gula aguçada falavam mais alto quando me olhava ao espelho e acenava a cabeça, em tom de auto-reprovação, pela saliência que o reflexo mostrava quando me punha de perfil. Até que me cansei de carregar a pança e tratei de a emagrecer. O rescaldo foi nítido: os excessos adiposos quase foram banidos e conquistei uma dependência do exercício físico que ainda não percebi se é salutar ou, como qualquer dependência, viciante.
Há uma primeira interrogação: adelgaçamos o corpo, esmeramos a estética no que pode ser transformado pelo esforço físico, e fazemo-lo para comprazimento pessoal ou para agrado alheio? Eis uma nótula de narcisista egoísmo: faço-o para me sentir bem comigo mesmo, quando os olhos não resistem à tentação de espreitar o que o espelho mostra à saída do banho matinal. Sei que há quem o faça para satisfazer demandas de outrem. Quer da pessoa que partilha os momentos mais íntimos, quer das ainda anónimas pessoas que hão-de cair no regaço após apaixonadas conquistas ou devaneios momentâneos. Desconto esta possibilidade no esforço de apaziguamento com o corpo. Concedo, num resvalo lírico: o corpo não é vital para o pulsar do amor. É importante, mas falta um pequeno nada para chegar a ser vital.
Daí que a insistência no cuidado corporal entre no domínio do pessoal. Apenas uma exigência íntima, para que o corpo não seja uma fonte de mau estar interior. Poderá haver contradição, pois há pouco afirmei que o corpo não é vital para o pulsar do amor. Os afectos conquistam-se pela substância do ser, não tanto por aquilo em que ele vem embrulhado. Diferente é o olhar que temos de nós mesmos, quando fitamos o espelho. Imagino que flácidos corpos se transcendam na necessidade de conviver em paz com excessos adiposos. Quem o faça está a mostrar, por outros padrões estéticos, que vive pacificado com o seu corpo. Não interessa se é uma falácia, ou genuíno sentir. De uma forma ou de outra (aceitando a adiposidade, ou vivendo em conflito interior por causa dela), os corpos que temos não são desprezíveis.
Depois emerge uma segunda pergunta: cultivamos o exercício físico pela estética corporal ou pela terapia da saúde? Há algo de sacrificial quando o corpo se entrega ao exercício físico. Apetece glosar o filósofo grego Juvenal: “é preciso castigar o corpo para conhecer a alma”. Descontado o excesso da punição física, o exercício físico contém algo de purificador. Facilita a exegese do ser. Quando o exercício se torna rotineiro, e a fase inicial de sacrifício é ultrapassada, há nele a depuração do interior: passamos a conhecer os limites do corpo e é mais fácil, durante o exercício, ordenar as ideias. Sem contar com o efeito terapêutico, que previne maleitas modernas e prolonga a esperança de vida. Se o corpo se adelgaça e contenta os padrões estéticos, trata-se de um efeito colateral.
Hoje sinto-me como um drogado que confessa estar agarrado à droga da sua predilecção: só falta trazer comigo uma fita métrica para anotar os centímetros que a cintura mede. Preocupa-me a obsessão. Ponho-me de perfil e olho para o espelho em busca de uma curva mais saliente que escorrega dos músculos abdominais. A certa altura, dou comigo a negar a teoria. E o exercício físico, na sua viciante dependência, começa a ser um instrumento para a harmonia corporal. Se calhar devo ser mais asceta e cultivar os prazeres do espírito.
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