25.4.07

Valores que se banalizam: liberdade e paz


Faço parte de uma geração que não sofreu as provações ditadas pela ausência de liberdade. A minha geração só sabe o que é uma guerra pelos livros de História e pelos filmes que a romanceiam. Porventura pela distância entre a minha geração e estes valores, há uma tendência para o tempo os gastar. A acomodação dos espíritos – a liberdade e a paz parecem cimentadas – leva-nos a desprezar estes valores. A questão não pode deixar de ser colocada: perderam importância?

Compreendo que as gerações mais velhas os meçam com outra bitola. Elas foram privadas de liberdade durante os anos da ditadura. Algumas pessoas sofreram com a guerra colonial – quer os que estiveram no terreno, quer os familiares que iam rezando para que houvesse lugar a um regresso sem estropiamentos. Apesar de não estar distante o tempo do jejum de liberdade e de paz, temos uma confortável sensação de que a liberdade e a paz são estáveis, uma sólida garantia. Há sempre espaço para alucinantes especulações, sobretudo dos fanáticos das teorias da conspiração: para eles há fantasmas prontos a despertar do sarcófago onde estão sepultados. Está sempre à espreita um fantasma disposto a espetar um punhal na paz e na liberdade.

Percebo que as gerações mais velhas sejam mais sensíveis a valores que tanto custaram a conquistar. Passar os olhos pelo último século é a matéria-prima necessária para se conferir mais valor à liberdade do que à paz. Passamos ao de leve pela primeira guerra, fomos neutrais na segunda guerra, tivemos cerca de catorze anos de guerra colonial. Espasmos de guerra, em contraponto com o longo consulado de ditadura, os quarenta e oito anos de asfixia da liberdade de opinião e perseguições policiais a quem ousava dissidir. Se a passagem dos anos consolidou a estabilidade da paz, as feridas abertas pela ditadura continuam por sarar. Sobretudo entre as gerações mais velhas, que não se cansam de recordar os penosos anos da obscura ditadura.

Assim vivemos, sentimentos paradoxais. Uma divergência entre gerações. As gerações anteriores à minha perseguem a militância das liberdades. Brandem, a todo o tempo, o fantasma do totalitarismo que triunfou durante o Estado Novo. Invocam a memória: da ausência de liberdade de expressão, da tortura da polícia política, das prisões arbitrárias, dos julgamentos ditados por delito de opinião, do cerceamento das liberdades fundamentais. Devemos-lhes a liberdade de hoje? Não me custa reconhecer que são credores de um contributo inestimável, com a sua luta. O que não aceito é que se apresentem como os únicos que lutaram, desde a clandestinidade, contra a ditadura deposta há trinta e três anos. Nem menos admito que falem de cátedra quando colocam na sua boca a palavra liberdade. Para muitos destes que se perfilam como arautos da liberdade, a palavra vem envenenada quando se solta das suas bocas. No seu projecto, à deposição da ditadura seguia-se uma ditadura de sinal contrário. Um totalitarismo pelo outro, ainda e sempre atropelando as liberdades.

A minha geração está emparedada entre os mais velhos e os mais novos. Entre os que não conseguem varrer da memória o rol de iniquidades, de privações de liberdade, os que continuam activos na defesa da liberdade como valor fundamental à dignidade humana. E os mais novos, que já nasceram em liberdade e nunca souberam o que é a guerra, a não ser pelos relatos trazidos pela geografia distante. Pela experiência do contacto com as gerações mais novas, sinto que elas resvalam com facilidade para posições totalitárias, para a intolerância. Manifestam desconhecimento da ausência de liberdade, das suas consequências. Há nesses comportamentos intolerantes uma perigosa deriva de totalitarismo. Como se uma esponja obliterasse o passado recente, e o elevado preço que os antepassados pagaram pela conquista da liberdade fosse um pormenor irrelevante. O que me faz supor que não valorizam a liberdade (e o mesmo se dirá para a paz) como as gerações que dela estiveram privadas.

Há um risco para as liberdades? Olhando em redor, a imagem que emerge é a de um Estado policial que cresce a cada dia que passa. Mais e mais intrusões nas liberdades fundamentais, escoradas por imperativos de segurança ou apenas por gratuitas exibições de autoridade. Ainda que tantas vezes seja nítido que cercear as liberdades é um pretexto para ancorar totalitarismos mal disfarçados exibidos por “democratas” de fraca têmpera. Alguns, mais velhos, apenas revelam o lastro ideológico em que foram educados, num totalitarismo de sinal contrário, agora reconvertidos a ideologias que professam as liberdades. Com a complacência das gerações mais novas, que vão sendo mais numerosas com o andar do tempo, menos sensíveis às provações ditadas pela ausente liberdade - que as desconhecem.

Se há solução? Uma e só uma: educação para a cidadania, desde os bancos da escola e sem o crivo dos enviesamentos ideológicos (tão caros aos encartados da pedagogia).

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