27.4.07

(Ainda menos que) os cinco minutos de fama


Eu gosto de ver imagens de pomposas inaugurações de obras públicas. Quanto mais demoradas na construção, quanto mais tenham furado o orçamento estimado, quanto mais se assemelham a elefantes brancos, melhor.

Não me encerro em contradição: não alinho com os que defendem obra pública em espiral, crentes nos seus predicados para a economia nacional; não dou para o peditório da teoria económica, tão cara às esquerdas, que tece largos encómios à obra pública (diz, sempre é um estímulo ao emprego), e assobia para o ar quando chega o momento de pagar a factura. Muita desta obra pública é cara, desnecessária, atrasada. E provinciana. Outras vezes, manifesta opções duvidosas: serve para embelezar o regime, acentuando a anestesia do povo, convidado à eterna genuflexão aos visionários que a projectaram; imortaliza os governantes do momento, cujos nomes ficam emoldurados indelevelmente.

Não é por nenhuma daquelas razões que adoro ser espectador destes cerimoniais. Nem pela bênção do bispo ou do cardeal, na unção que afasta bruxedos que possam amaldiçoar a cobiçada obra pública. O que me delicia é o perfume do povo que adere em massa à cerimónia. O povo exultante e amestrado. No aplauso unânime da obra quase a ser inaugurada. Os governantes recebem o seu banho de multidão. Olham para o povo que os admira com a superior aura da autoridade com que sobem ao palanque. Há ali uma sinergia que é a pulsão genuína da democracia: um povo agradecido faz de pajem aos governantes, que aproveitam para massajar o ego tão grande enquanto desmultiplicam a retórica do serviço-público-que-é-um-sacrifício-pessoal.

E o povo faz fila para aparecer em primeiro lugar quando a fita for cortada por aquele que manda mais. O povo vai de véspera, porque quer ter a suprema felicidade de ser o primeiro a atravessar a linha que delimita a obra acabada de inaugurar. Atropela-se, na confusão de cotovelos e de impropérios que sobram com a emoção do momento. Costuma-se dizer que todos temos cinco minutos de glória. Os cinco minutos que nos retiram do anonimato – como se fosse tão importante deixar de ser, por cinco minutos que seja, uma anónima personagem no meio da multidão.

Talvez os psicólogos encontrem explicações para a fobia de ser primeiro em alguma coisa, quando ao povo é dada a oportunidade de emergir do nada em frente das câmaras da televisão e dos flashes das máquinas fotográficas. Foi assim com a Expo 98, com a Ponte Vasco da Gama, com os estádios que sorveram fortunas para acolher um campeonato europeu de futebol, com uma piscina municipal, com mais uma rotunda que regista a obra do autarca, com um túnel há tanto prometido. Como é ternurenta a imagem do microfone a passar diante do povo enquanto espera, ansioso, que a obra seja declarada aberta. E depois é vê-los numa enlouquecida correria, a ver quem vê primeiro a luz na outra extremidade do túnel. Quase todos velhinhos, que a vida se esgota e ainda não houve lugar aos merecidos cinco minutos de fama.

Hão-de ir para a sepultura reconfortados. Por uma vez na vida, protagonistas do noticiário. Falaram para milhões de espectadores. Não interessa se disseram disparate ou atropelaram a gramática. Não interessa que hajam mostrado a boca desdentada que nunca se deu bem com os dentistas. Não interessa que exalem a maior das ignorâncias. Não interessa o aprumado buço das senhoras em vozearia estridente. Nem interessa que sejam motivo de troça dos espectadores que consomem esta informação; logo dirão que é a mortal inveja que alimenta a troça. Tudo o que interessa é que tenham sido, por segundos, as pessoas mais importantes do universo. Que as câmaras tenham estado focadas só sobre eles. Por uns segundos que seja. O que desmente o teorema: afinal não temos direito aos cinco minutos que nos projectam no instantâneo estrelato.

Hão-de ir desta vida com a gratificação de terem deixado obra à prole. Algures no futuro longínquo, os netos hão-de informar os bisnetos que aquele velhinho apressado, em esforçada correria pelos corredores do sombrio túnel, é o bisavô que nunca conheceram. Saberão disso no dia em que a obra celebrar meio centenário e a imprensa resgatar do distante passado (que é hoje presente) as fotografias e as imagens do bisavô que foi, por uns segundos só, herói público.

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