Já muito se escreveu sobre a retórica assustadora dos taxistas. Páginas e páginas de crónicas de costumes descreveram o discurso violento e ignaro dos condutores de táxis. Os profissionais do ramo entraram para o imaginário colectivo como pessoas pouco recomendáveis, de quem convém fugir para evitar indisposições mentais. Como não ando de táxi, não posso testemunhar a insanidade da classe. Tenho alguém que os substitui com distinção: os cabeleireiros.
(Hesito: hei-de escrever “cabeleireiro” ou “barbeiro”? Nos dias que correm abundam os cabeleireiros unisexo. Na clientela, homens e mulheres convivem sem os preconceitos de antanho, quando era costume separar os homens para os barbeiros e as mulheres para os cabeleireiros. Agora, os cabeleireiros também acolhem clientela masculina – ela mesma desprendida dos preconceitos do passado, pois entrar num estabelecimento destes era exclusivo do sexo feminino. Outro sinal dos tempos, nos cabeleireiros também trabalham profissionais do sexo masculino. Que se dão a conhecer como cabeleireiros quando são inquiridos acerca da profissão. Quando o cabelo abunda e há que o cortar, hoje digo que vou ao cabeleireiro.)
Já há vários anos que abandonei os tradicionais barbeiros, onde a entrada era permitida apenas a varões. Deixei-me desses locais que ainda perseguem uma luz de ancestralidade. Perdi o contacto com as cadeiras gastas, as mãos cansadas dos artífices à beira da reforma, as navalhas com décadas que aparam suíças e extremidades capilares. Comecei a frequentar as cadeias de franchising onde também se corta o cabelo a homens. Não senti saudades da atmosfera máscula que habitava os barbeiros artesanais. Nem as conversas de futebol, com a exaltação típica de quem abraça a clubite. O que mais me atraiu na ideia de mudar de hábitos e frequentar cabeleireiros unisexo foi perder o rasto aos fanáticos barbeiros que rivalizavam, no meu imaginário, com os taxistas minuciosamente descritos nas crónicas de costumes.
Foi uma surpresa, o cabelo cortado por cabeleireiras. Pelo silêncio durante a função. Não estava habituado. Dantes era brindado com a conversa metida pelos barbeiros. Tinha que suportar a pesporrência e a verborreia de quem se julgava um catedrático do mundo. Saltava de estabelecimento em estabelecimento e o registo era invariável. Sempre os mesmos inteligentes, com opinião para tudo. Senhores das suas certezas, ditas com uma convicção assustadora. Ali não havia lugar à dissidência de opinião, não fosse a tesoura escorregar com o ânimo exaltado do barbeiro e ferir-me. Com a mudança de hábitos, um silêncio retemperador massajava os tecidos capilares, nas mãos dóceis das cabeleireiras. O meu bem-estar aumentava na exacta medida da ausência de homens a aparar as melenas excessivas.
Certo dia, calhou-me em sorte um cabeleireiro masculino. Lá regressou o velho hábito de meter conversa sobre os temas mais banais, com as opiniões triviais, lugares-comuns cansativos. E a obrigação de responder, para que a função não caísse num monólogo que me demitiria de um dever de cortesia – o de manter o diálogo. A tudo isto acresce o estereótipo que perpassou os sentidos: nos estabelecimentos onde convivem homens e mulheres, os cabeleireiros aparentam homossexualidade. Nada contra. Apenas o incómodo de me sentir olhado de forma diferente por alguém que trata do meu cabelo e que exibe tiques que fermentam o estereotipo.
Mudei de local. Das primeiras vezes, uma extremosa cabeleireira que tratava o cabelo com mãos de fada. Fazia-o num silêncio que tanto agradecia. A presença de uma cabeleireira, para mais com figura agradável, é motivo suficiente para que o ritual de cortar o cabelo deixe de ser um suplício, como o era outrora. Após meia dúzia de deslocações ao lugar do costume, sempre atendido pela mesma cabeleireira, com o mesmo emudecimento plácido, a rotação de funcionários do franchising fez calhar em sorte um cabeleireiro. Falador, demasiado falador. Intrigantemente assustador. Às vezes diz coisas num tom de voz quase imperceptível e pergunta-me se concordo. Como não consigo assinar cheques em branco, peço para repetir. O que diz então parece vagamente parecido com o que consegui discernir antes. Também tem opiniões vincadas, certezas inabaláveis, e perora sobre temas que lhe ocorre comentar. Acho que estes cabeleireiros vêm Marcelo Rebelo de Sousa a mais.
Depois de ter levado com dose repetida, está lavrada a sentença: há que mudar de lugar onde corto o cabelo. Para não ter que regressar ao passado, quando adiava por uma semana e outra mais o desbaste das abundâncias capilares. Era no tempo em que cortar o cabelo era um suplício. E como é obrigatório fugir do passado incómodo...
(Hesito: hei-de escrever “cabeleireiro” ou “barbeiro”? Nos dias que correm abundam os cabeleireiros unisexo. Na clientela, homens e mulheres convivem sem os preconceitos de antanho, quando era costume separar os homens para os barbeiros e as mulheres para os cabeleireiros. Agora, os cabeleireiros também acolhem clientela masculina – ela mesma desprendida dos preconceitos do passado, pois entrar num estabelecimento destes era exclusivo do sexo feminino. Outro sinal dos tempos, nos cabeleireiros também trabalham profissionais do sexo masculino. Que se dão a conhecer como cabeleireiros quando são inquiridos acerca da profissão. Quando o cabelo abunda e há que o cortar, hoje digo que vou ao cabeleireiro.)
Já há vários anos que abandonei os tradicionais barbeiros, onde a entrada era permitida apenas a varões. Deixei-me desses locais que ainda perseguem uma luz de ancestralidade. Perdi o contacto com as cadeiras gastas, as mãos cansadas dos artífices à beira da reforma, as navalhas com décadas que aparam suíças e extremidades capilares. Comecei a frequentar as cadeias de franchising onde também se corta o cabelo a homens. Não senti saudades da atmosfera máscula que habitava os barbeiros artesanais. Nem as conversas de futebol, com a exaltação típica de quem abraça a clubite. O que mais me atraiu na ideia de mudar de hábitos e frequentar cabeleireiros unisexo foi perder o rasto aos fanáticos barbeiros que rivalizavam, no meu imaginário, com os taxistas minuciosamente descritos nas crónicas de costumes.
Foi uma surpresa, o cabelo cortado por cabeleireiras. Pelo silêncio durante a função. Não estava habituado. Dantes era brindado com a conversa metida pelos barbeiros. Tinha que suportar a pesporrência e a verborreia de quem se julgava um catedrático do mundo. Saltava de estabelecimento em estabelecimento e o registo era invariável. Sempre os mesmos inteligentes, com opinião para tudo. Senhores das suas certezas, ditas com uma convicção assustadora. Ali não havia lugar à dissidência de opinião, não fosse a tesoura escorregar com o ânimo exaltado do barbeiro e ferir-me. Com a mudança de hábitos, um silêncio retemperador massajava os tecidos capilares, nas mãos dóceis das cabeleireiras. O meu bem-estar aumentava na exacta medida da ausência de homens a aparar as melenas excessivas.
Certo dia, calhou-me em sorte um cabeleireiro masculino. Lá regressou o velho hábito de meter conversa sobre os temas mais banais, com as opiniões triviais, lugares-comuns cansativos. E a obrigação de responder, para que a função não caísse num monólogo que me demitiria de um dever de cortesia – o de manter o diálogo. A tudo isto acresce o estereótipo que perpassou os sentidos: nos estabelecimentos onde convivem homens e mulheres, os cabeleireiros aparentam homossexualidade. Nada contra. Apenas o incómodo de me sentir olhado de forma diferente por alguém que trata do meu cabelo e que exibe tiques que fermentam o estereotipo.
Mudei de local. Das primeiras vezes, uma extremosa cabeleireira que tratava o cabelo com mãos de fada. Fazia-o num silêncio que tanto agradecia. A presença de uma cabeleireira, para mais com figura agradável, é motivo suficiente para que o ritual de cortar o cabelo deixe de ser um suplício, como o era outrora. Após meia dúzia de deslocações ao lugar do costume, sempre atendido pela mesma cabeleireira, com o mesmo emudecimento plácido, a rotação de funcionários do franchising fez calhar em sorte um cabeleireiro. Falador, demasiado falador. Intrigantemente assustador. Às vezes diz coisas num tom de voz quase imperceptível e pergunta-me se concordo. Como não consigo assinar cheques em branco, peço para repetir. O que diz então parece vagamente parecido com o que consegui discernir antes. Também tem opiniões vincadas, certezas inabaláveis, e perora sobre temas que lhe ocorre comentar. Acho que estes cabeleireiros vêm Marcelo Rebelo de Sousa a mais.
Depois de ter levado com dose repetida, está lavrada a sentença: há que mudar de lugar onde corto o cabelo. Para não ter que regressar ao passado, quando adiava por uma semana e outra mais o desbaste das abundâncias capilares. Era no tempo em que cortar o cabelo era um suplício. E como é obrigatório fugir do passado incómodo...
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