16.4.07

A ruralidade lusitana redefinida

De tempos em tempos, retalhos do noticiário local. Na semana passada, Ponte de Lima fez cara feia aos forasteiros descuidados com o lixo nas ruas e jardins. Ontem: Chaves levanta autos de contra-ordenação a quem fizer passear cães sem trela, ou deixar as galinhas à solta na rua, ou tiver a ousadia de furtar flores dos canteiros públicos, ou aos adolescentes que pintarem graffiti em paredes antes imaculadas. À frente do microfone, o autarca candidamente anunciou que nesta primeira fase os fiscais não vão levantar os autos de contra-ordenação. Primazia à função pedagógica. O povo que aprenda os novos hábitos da urbanidade, sob o cutelo da multa futura.

A reportagem vinha embelezada por umas imagens tão típicas do Portugal profundo: as pedras rugosas de uma aldeia transmontana eram o lastro dos galináceos que povoavam a rua, andarilhos de um lado para o outro com as suas cristas altaneiras e o cacarejar irritante. Doravante terão que ficar aprisionados, os galináceos. Dentro de currais a preceito. Como o estão porcos, cavalos e gado bovino. O sinal de mudança vem quebrar as sagradas tradições que são o substrato da portugalidade ancestral. Há nos usos animais a revelação da têmpera dos povos. Se na Índia as vacas povoam as ruas em indiferente convívio com as gentes, nas ruelas do Portugal perdido são as galinhas que pisam os terrenos da liberdade. Só falta sagrar as galinhas no mesmo altar em que os indianos colocam as vacas.

O que me inquieta mesmo é o enésimo acto de engenharia social esquadrinhado dos gabinetes de consultores que se fazem bacharéis na grande cidade e depois acampam na província. Estes engenheiros sociais dão o seu melhor no afã de exportarem hábitos urbanos para a longínqua província. O que é rural transforma-se, molda-se à modernidade com sinais urbanos. Um ditame dos novos tempos, a que velhos desterrados no campo silvestre são obrigados, em fase terminal de vida, a adaptar.

Confesso que sou apanhado num remoinho de contradições. Se, por um lado, acho lamentável que os autarcas gastem tempo precioso a congeminarem políticas repressivas dos costumes, por outro lado não há nada que me vincule ao conservadorismo da ruralidade de antanho. Essa ruralidade que começa a ser destruída traz desidentificação pessoal. Poderei arrastar a factura de rapaz citadino para me sentir desconfortável com os resíduos de ruralidade que desfilam diante dos olhos, quando de visita ao Portugal distante. A imagem das galinhas em demanda histérica pelas pedras da calçada, empestando as ruas com os seus dejectos, explica muito da minha dança descompassada com a ruralidade.

Não sei onde me hei-de colocar ao tomar conhecimento desta absurda iniciativa do município de Chaves. Deveria ficar contente. Há traços dessa ruralidade, que deprime o Portugal ainda tão preso ao atavismo, que são apagados do mapa se as contra-ordenações forem passadas a eito. Não posso concordar, contudo, com o passo mágico de engenharia social que o permita. Custa-me a aceitar que mudanças deste alcance se façam por lei. Devem ser espontâneas. Como espontâneas foram sendo transformações de hábitos das pessoas: o banho é o melhor exemplo que me recordo.

O espartilho das contradições coloca-me numa encruzilhada de onde não consigo sair. Se não me revejo na ruralidade impregnada, o vencimento desta engenharia social que asperge a província com toques mágicos de modernidade é desconfortável por destruir essa ruralidade de que não gosto. Se a moda pega, um dia destes os fiscais das câmaras remotas farão incursões nas freguesias rurais, perseguindo as velhinhas que ostentam farfalhudo buço, ou as velhinhas que teimam em trajar luto quando os maridos feneceram há longos anos, ou os piqueniques que devolvem a alegria prazenteira de fim-de-semana ao povo trabalhador, ou o hediondo folclore que liberta o espírito do povo embriagado. Como já proibiriam os garrafões de cinco litros, esse ícone da nacionalidade.

E se tudo isto vier a ser proibido, fico contristado: porque desaparecem vestígios da ruralidade em que não me revejo. Eliminados vestígios da antítese do que sou. O que me amotina, pois muito do que somos constrói-se pela desidentificação com o que não gostamos.

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