4.4.07

Moralismo de sacristia


Agora que já assentou a poeira do referendo ao aborto, que o distanciamento temporal fez repousar a exaltação emotiva, parece extemporâneo regressar ao tema. Ainda me chegam ecos da tempestade que varreu a paisagem. Em boa verdade, continuo a manifestar um profundo desinteresse sobre o tema, convencido que estou que é do domínio da consciência individual. Logo, matéria não referendável ou sequer passível de discussão pelos outros quando o que está em causa é uma decisão individual.

Alguns ecos só me chegaram tardiamente, em conversas com amigos. Há dias soube que alguém terá dito, numa roda de amigos, que o “não” no referendo se impunha porque o seu contrário iria permitir que as pessoas andassem por aí a fornicar à vontade. Os termos terão sido mais brejeiros, o que não abona aos predicados de rectidão moral e linguística da pessoa em causa, tão devota e empenhada em convencer os outros que a moral católica cauciona intromissões no alheio.

Que dizer perante este argumento? Para começar, o que está ali dito é um não argumento, um disparate pegado que mostra a desorientação porventura causada pela adivinhação do resultado que viria a acontecer. Durante as longas semanas que dividiram as pessoas entre os partidários e os adversários da legalização do aborto até às dez semanas, foram variadas as manifestações de tontice, com ideias patéticas em sustentação de ambos os lados da barricada. O auge terá sido atingido com este arremedo de argumento que vigia a sexualidade alheia. Onde a moral católica tributária do fundamentalismo da Opus Dei se confunde com a mais profunda imbecilidade.

O que me atordoa é alguém que não tem apenas a quarta classe poder vociferar semelhante dislate. Há alturas em que a racionalidade de uma formação superior é aniquilada pelas algemas da fé, pelas diligências da alma que aprisiona os crentes à canina fidelidade aos dogmas católicos. Pelo meio, há quem se espalhe ao comprido com argumentos que nem um espelho cristalino permitiria reflectir a idiotia que encerram. Cansa-me o convencimento da igreja, e dos seus apóstolos que se voluntariam para o sacerdócio da causa, de que pode interferir na consciência individual. O pecado é dos piores legados da civilização judaico-cristã. Uma masmorra que remete o livre arbítrio para o medo, condiciona a vontade, faz das pessoas vãs marionetas nas mãos de uma qualquer entidade divina.

Àquela pessoa que quis votar contra a legalização do aborto até às dez semanas talvez não ocorra que teve liberdade para o fazer. Como aos seus oponentes foi dado o direito de exprimirem opinião diferente. Não lhe terá ocorrido que ao dizer o que disse apareceu no filme como a castradora personagem que não hesita em vasculhar a intimidade alheia, ciente que pode sentenciar o coito dos outros. Se alguma vez tivesse ouvido semelhantes palavras numa discussão sobre o tema (de que na altura fugi a sete pés, pela irracionalidade que campeou), teria feito duas perguntas à pessoa em causa: “o que tens a ver com o sexo dos outros? E os outros, têm alguma coisa a dizer sobre a tua sexualidade?”

Não há libertinagem que possa ser censurada pela igreja ou pelos seus apaniguados. Porque quem se entrega à promiscuidade deve apenas prestar contas à sua consciência, sem ninguém ter direito a ditar sentenças. O que escapa a estes moralistas de sacristia é o perigo dos seus alvitres na vida alheia: põem-se a jeito para a sua vida ser devassada pelos outros. E como não há bom telhado de vidro que resista às pedras que sobre ele tombam, o recato seria bom conselheiro para não olharem com tanto zelo para a vida alheia. A sanha do pecado, mais a vigilância instalada que faz as delícias eclesiásticas, hão-de continuar a ser as forças que castram a individualidade do ser.

Já o tinha admitido num texto anterior: toda a celeuma do referendo passou-me ao lado, por metódico abstencionismo porque não encontro o direito de interferir em decisões que só aos outros dizem respeito. Se não estivesse persuadido da necessária abstenção e tivesse ouvido este argumento entontecido dias antes do referendo, quase me convencia a votar “sim”. Ele há ideias que são tiros no pé dos seus autores. Enternece-me o auto-convencimento da militância destas pessoas. Têm direito à militância, como qualquer militância, sublinhe-se. Continuo a achar enternecedor ver como essas pessoas se acham convencidas da persuasão dos seus argumentos, sem discernimento para a introspecção que permita descobrir como patéticas são as palavras ditas.

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