Agora que já assentou a poeira do referendo ao aborto, que o distanciamento temporal fez repousar a exaltação emotiva, parece extemporâneo regressar ao tema. Ainda me chegam ecos da tempestade que varreu a paisagem. Em boa verdade, continuo a manifestar um profundo desinteresse sobre o tema, convencido que estou que é do domínio da consciência individual. Logo, matéria não referendável ou sequer passível de discussão pelos outros quando o que está em causa é uma decisão individual.
Alguns ecos só me chegaram tardiamente, em conversas com amigos. Há dias soube que alguém terá dito, numa roda de amigos, que o “não” no referendo se impunha porque o seu contrário iria permitir que as pessoas andassem por aí a fornicar à vontade. Os termos terão sido mais brejeiros, o que não abona aos predicados de rectidão moral e linguística da pessoa em causa, tão devota e empenhada em convencer os outros que a moral católica cauciona intromissões no alheio.
Que dizer perante este argumento? Para começar, o que está ali dito é um não argumento, um disparate pegado que mostra a desorientação porventura causada pela adivinhação do resultado que viria a acontecer. Durante as longas semanas que dividiram as pessoas entre os partidários e os adversários da legalização do aborto até às dez semanas, foram variadas as manifestações de tontice, com ideias patéticas em sustentação de ambos os lados da barricada. O auge terá sido atingido com este arremedo de argumento que vigia a sexualidade alheia. Onde a moral católica tributária do fundamentalismo da Opus Dei se confunde com a mais profunda imbecilidade.
O que me atordoa é alguém que não tem apenas a quarta classe poder vociferar semelhante dislate. Há alturas em que a racionalidade de uma formação superior é aniquilada pelas algemas da fé, pelas diligências da alma que aprisiona os crentes à canina fidelidade aos dogmas católicos. Pelo meio, há quem se espalhe ao comprido com argumentos que nem um espelho cristalino permitiria reflectir a idiotia que encerram. Cansa-me o convencimento da igreja, e dos seus apóstolos que se voluntariam para o sacerdócio da causa, de que pode interferir na consciência individual. O pecado é dos piores legados da civilização judaico-cristã. Uma masmorra que remete o livre arbítrio para o medo, condiciona a vontade, faz das pessoas vãs marionetas nas mãos de uma qualquer entidade divina.
Àquela pessoa que quis votar contra a legalização do aborto até às dez semanas talvez não ocorra que teve liberdade para o fazer. Como aos seus oponentes foi dado o direito de exprimirem opinião diferente. Não lhe terá ocorrido que ao dizer o que disse apareceu no filme como a castradora personagem que não hesita em vasculhar a intimidade alheia, ciente que pode sentenciar o coito dos outros. Se alguma vez tivesse ouvido semelhantes palavras numa discussão sobre o tema (de que na altura fugi a sete pés, pela irracionalidade que campeou), teria feito duas perguntas à pessoa em causa: “o que tens a ver com o sexo dos outros? E os outros, têm alguma coisa a dizer sobre a tua sexualidade?”
Não há libertinagem que possa ser censurada pela igreja ou pelos seus apaniguados. Porque quem se entrega à promiscuidade deve apenas prestar contas à sua consciência, sem ninguém ter direito a ditar sentenças. O que escapa a estes moralistas de sacristia é o perigo dos seus alvitres na vida alheia: põem-se a jeito para a sua vida ser devassada pelos outros. E como não há bom telhado de vidro que resista às pedras que sobre ele tombam, o recato seria bom conselheiro para não olharem com tanto zelo para a vida alheia. A sanha do pecado, mais a vigilância instalada que faz as delícias eclesiásticas, hão-de continuar a ser as forças que castram a individualidade do ser.
Já o tinha admitido num texto anterior: toda a celeuma do referendo passou-me ao lado, por metódico abstencionismo porque não encontro o direito de interferir em decisões que só aos outros dizem respeito. Se não estivesse persuadido da necessária abstenção e tivesse ouvido este argumento entontecido dias antes do referendo, quase me convencia a votar “sim”. Ele há ideias que são tiros no pé dos seus autores. Enternece-me o auto-convencimento da militância destas pessoas. Têm direito à militância, como qualquer militância, sublinhe-se. Continuo a achar enternecedor ver como essas pessoas se acham convencidas da persuasão dos seus argumentos, sem discernimento para a introspecção que permita descobrir como patéticas são as palavras ditas.
Alguns ecos só me chegaram tardiamente, em conversas com amigos. Há dias soube que alguém terá dito, numa roda de amigos, que o “não” no referendo se impunha porque o seu contrário iria permitir que as pessoas andassem por aí a fornicar à vontade. Os termos terão sido mais brejeiros, o que não abona aos predicados de rectidão moral e linguística da pessoa em causa, tão devota e empenhada em convencer os outros que a moral católica cauciona intromissões no alheio.
Que dizer perante este argumento? Para começar, o que está ali dito é um não argumento, um disparate pegado que mostra a desorientação porventura causada pela adivinhação do resultado que viria a acontecer. Durante as longas semanas que dividiram as pessoas entre os partidários e os adversários da legalização do aborto até às dez semanas, foram variadas as manifestações de tontice, com ideias patéticas em sustentação de ambos os lados da barricada. O auge terá sido atingido com este arremedo de argumento que vigia a sexualidade alheia. Onde a moral católica tributária do fundamentalismo da Opus Dei se confunde com a mais profunda imbecilidade.
O que me atordoa é alguém que não tem apenas a quarta classe poder vociferar semelhante dislate. Há alturas em que a racionalidade de uma formação superior é aniquilada pelas algemas da fé, pelas diligências da alma que aprisiona os crentes à canina fidelidade aos dogmas católicos. Pelo meio, há quem se espalhe ao comprido com argumentos que nem um espelho cristalino permitiria reflectir a idiotia que encerram. Cansa-me o convencimento da igreja, e dos seus apóstolos que se voluntariam para o sacerdócio da causa, de que pode interferir na consciência individual. O pecado é dos piores legados da civilização judaico-cristã. Uma masmorra que remete o livre arbítrio para o medo, condiciona a vontade, faz das pessoas vãs marionetas nas mãos de uma qualquer entidade divina.
Àquela pessoa que quis votar contra a legalização do aborto até às dez semanas talvez não ocorra que teve liberdade para o fazer. Como aos seus oponentes foi dado o direito de exprimirem opinião diferente. Não lhe terá ocorrido que ao dizer o que disse apareceu no filme como a castradora personagem que não hesita em vasculhar a intimidade alheia, ciente que pode sentenciar o coito dos outros. Se alguma vez tivesse ouvido semelhantes palavras numa discussão sobre o tema (de que na altura fugi a sete pés, pela irracionalidade que campeou), teria feito duas perguntas à pessoa em causa: “o que tens a ver com o sexo dos outros? E os outros, têm alguma coisa a dizer sobre a tua sexualidade?”
Não há libertinagem que possa ser censurada pela igreja ou pelos seus apaniguados. Porque quem se entrega à promiscuidade deve apenas prestar contas à sua consciência, sem ninguém ter direito a ditar sentenças. O que escapa a estes moralistas de sacristia é o perigo dos seus alvitres na vida alheia: põem-se a jeito para a sua vida ser devassada pelos outros. E como não há bom telhado de vidro que resista às pedras que sobre ele tombam, o recato seria bom conselheiro para não olharem com tanto zelo para a vida alheia. A sanha do pecado, mais a vigilância instalada que faz as delícias eclesiásticas, hão-de continuar a ser as forças que castram a individualidade do ser.
Já o tinha admitido num texto anterior: toda a celeuma do referendo passou-me ao lado, por metódico abstencionismo porque não encontro o direito de interferir em decisões que só aos outros dizem respeito. Se não estivesse persuadido da necessária abstenção e tivesse ouvido este argumento entontecido dias antes do referendo, quase me convencia a votar “sim”. Ele há ideias que são tiros no pé dos seus autores. Enternece-me o auto-convencimento da militância destas pessoas. Têm direito à militância, como qualquer militância, sublinhe-se. Continuo a achar enternecedor ver como essas pessoas se acham convencidas da persuasão dos seus argumentos, sem discernimento para a introspecção que permita descobrir como patéticas são as palavras ditas.
Sem comentários:
Enviar um comentário