23.4.07

Aspectos chocantes da vida


Os contrastes oferecem-se nas grandes metrópoles, onde a grandiloquência e a monumentalidade convivem com misérias que ali desaguam, em magotes. Todas as pedras seculares testemunham o garbo histórico, mostram o lastro civilizacional. Pedem aos turistas a homenagem que os traz em demanda das atracções marcadas nos guias de referência. São as mesmas pedras que escondem o olhar das muitas misérias que se acolhem pelos recantos da grande cidade, porque as prometidas oportunidades tardam em chegar. Promessas para levas de imigrantes que fugiram da terra natal, ou para os desenganados da vida que erram pelas ruelas, que estacionam nas praças turísticas clamando pela misericórdia das multidões que ali festejam a sua abastança.

Madrid é uma cidade assim. Exibe o selo da Espanha faustosa. Sinal da centralidade espanhola, para desgosto das nacionalidades que se acobertam num mosaico que artificialmente deu nome a Espanha. Grande metrópole, com tantos edifícios que desnudam as pedras antigas bem tratadas, selando os ares de outrora quando os ibéricos eram protagonistas do mundo. Podiam as palavras enredar-se em descrições exaustivas das maravilhas arquitectónicas e monumentais espalhadas por Madrid. Ou serem o cicerone dos olhos que se demoraram num dos muitos museus que há em Madrid. Mas os contrastes marcam a memória, com o poder do antagonismo que revela um largo hiato entre mundos tão diferentes que são vizinhos, porta com porta.

Pela alvorada, mal ainda o sol se levantou, uma fileira de sem-abrigo dorme nos corredores da estação de metro do Banco de Espanha. O ar fétido seria dominante, não fosse o quadro chocante das pessoas amontoadas no chão frio, umas deitadas dentro de um manto espesso de cobertores imundos, outras escondidas dentro de caixotes, outras, mais infaustas, mostrando os pés nus insensíveis ao frio da manhã. O ruído ocasional dos transeuntes madrugadores não desperta os sem-abrigo. Nem as pessoas que vão a caminho do aeroporto e arrastam pelo chão as barulhentas rodas das malas. Aqueles sonos seriam uma fonte incessante das vidas prometidas que o destino haveria de descompor. Ao menos, enquanto dormem, permanece o fio edulcorante do sonho portentoso. Adiam a pungente vida que espaça os dias que hão-de levar até à morte.

Na Puerta del Sol concentram-se os turistas. Um mosaico de línguas e raças que transforma o lugar num cadinho cosmopolita. Acantonam-se pedintes, angariadores de assinaturas para causas diversas, vendedores africanos especializados na contrafacção e mais pedintes que partilham as imediações da zona comercial, esperançosos na generosidade de quem passa. De repente ouço a algazarra emitida por um jovem sem braços que morde um copo de plástico onde repousam as esmolas. Salta e faz ruídos imperceptíveis, para que as pessoas em redor o vejam e se choquem com a desdita. Pareceu-me que os grunhidos eram sinal da deficiência mental que se adicionava à amputação física. Como se um mal já não fosse bastante.

A caminho do parlamento, onde ainda estão espalhados pelo chão alguns pedintes paredes meias com chineses e negros que distribuem papelinhos da publicidade a restaurantes, à venda de ouro, ou à incrustação de piercings e tatuagens, cruzei-me com uma velhinha corcunda de chapéu estendido. Uns metros mais à frente, outra velhinha esquálida jazia no chão. A primeira dobrava a corcunda proeminente, tecia um ângulo de quarenta e cinco graus que inclinava o dorso numa paralela ao chão. Ela só conseguia discernir os pés dos passeantes, enquanto sentia as moedas a tilintar no gasto chapéu que a mão encardida estendia. A outra velhinha tinha o olhar perdido no vazio e espalhava toda a fragilidade física num cantinho entre um restaurante e uma loja de roupa, à porta de uma casa devoluta. Tão franzina que se escondia num lugar esconso; diria que ocupava milímetros de um pedaço de chão insignificante. Quase tropecei nela, tão pequena era a mulher, tão frágil a sua aparência. E por quase tropeçar nela, assustado, ocorreu-me que uns instantes mais tarde de atenção teriam feito com que esbarrasse na mendiga. E ocorreu-me que o tropeção traria a desgraça, uma perna partida da velhinha, com o som dos ossos a estalar perante o meu pânico de ser tarde para voltar com o tempo atrás e evitar o tropeção.

No dia seguinte, quando lá passei, as duas velhinhas permaneciam, estóicas, à espera de generosidade. Nem a corcunda da primeira se havia inclinado, nem o olhar ausente da segunda e a sua debilidade tinham mudado. Fui acometido por um pulsar egoísta: os inditosos exemplos, aspectos chocantes da vida, são lições. Mostram como todo o pessimismo e o desconforto com as pequenas coisas que nos atormentam são prova viva da ingratidão, talvez até o desmerecimento da sorte que nos calhou. E de como é irreprimível a tentação para mergulhar numa espiral autodestrutiva, quando só as desgraças alheias o podem motivar.

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