30.4.07

Dos fracos não reza a história?


Há preceitos enraizados nos hábitos que parecem indeclináveis. Garbosas narrativas enaltecem a bravura dos que deram o peito às balas, enfrentaram o desconhecido, ousaram desbravar caminhos por inóspitas veredas, e vingaram. A História está preenchida de narrativas de audácia. E ainda que vivamos tempos que muitos chamam “pós-modernos”, parece que a instrução de carácter permanece presa à exigência da coragem. Na vindicação de que a história não deixa registo dos fracos.

A persistência no preceito causa-me confusão. Primeiro, a apologia da valentia renega a valorização da pessoa. Quando se tecem loas aos bravos entre nós há um convite ao desprendimento de si. Convocam-se os que não olham para trás se for preciso despojar a vida em nome de uma causa. Não percebo como o elogio da coragem cega se concilia com a denúncia dos kamikazes que espalham terror e sacrificam a vida, com ela levando as vidas de um punhado de inocentes. É perigoso cantar elogios aos valentes que esmagam impiedosamente os fracos, os que escolheram o lado errado. O pregão vem enfeitado com a oferenda de um sacrifício de si. Para sermos fortes, por vezes temos que tombar no altar das convicções que perseguimos. E a vida perde significado.

Há mais perplexidade: entoar o refrão é uma falácia. Sem os fracos não há mister de assinalar os afamados fortes. Para vangloriar os fortes houve que dobrar pela força os fracos. Os fracos existem. Estão inscritos na História. Ficam retratados pelas piores razões, vergados ao humilhante peso da derrota. Insistir no pregão de que ficam extirpados da História é negar uma petição de princípio. Por mais que custe aos hagiógrafos, os fortes não lutaram sozinhos. Podem os seus nomes entrar no púlpito dos que merecem ficar engalanados a ouro. Podem os fortes ser credores de lisonjas. Mas se as narrativas cantam batalhas onde o sangue jorra fácil, como se o sofrimento das vidas sacrificadas fosse apenas uma ténue vírgula na História da humanidade, essas batalhas foram encontro dos que entram no panteão dos fortes e dos que, inditosos, tombaram derrotados.

A literatura segue contra a corrente. Os historiadores e os zeladores da valentia alheia que idealizam como sua encantam-se com os que se distinguiram por sanguinários actos que vergaram os fracos a essa condição. Há escritores de agora que choramingam pelos cantos. Extasiam-se com a sua condição miserável. Fracos de espírito, fracos de estética, férteis campos de desamores, como se houvesse mister de se demitirem da felicidade. Diria que muitos encontram nas asperezas semeadas pelo caminho o lenitivo para a escrita. Eles são os fracos e fazem olímpico garbo da condição. Será a pós-modernidade nos costumes instalados. Os historiadores e os ascetas da bravura andarão confusos com a inversão de valores.

Quando leio o estilo dos coitados que expõem as suas fraquezas e se auto-denunciam no altar sacrificial de si mesmos, desconfio. Desconfio que há ali um pungente pedido de clemência alheia. Expõem a sua amargurada vida, como ela tem sido um percurso cheio de espinhos que faz margem com um rio aonde confluem as tantas lágrimas de mofina vertidas. O desnudamento é um coro de lamentos que intui a comiseração dos outros. Diria, na invenção de uma palavra, a “coitadificação” perene. Surgem como os coitadinhos que clamam, piedosamente, por um afago, por muitos afagos de quem se perder de pena com a miséria assim despida.

Não sei se estes fracos, malquistos com a fortuna, são os fortes de agora. É preciso discernimento para jurar aos olhos dos outros os caminhos ínvios por onde a vida se amotinou. Desconto a lânguida choradeira que há-de levar água ao seu moinho – quando os militantes coitados choram desamores, conquistando muitas donzelas que se apoderam de compaixão acreditando, no seu íntimo, que ganham um pedaço de céu. Isso descontado, há um sinal de contra corrente na exposição do infindável rol de desgraças que preenchem uma vida. É preciso ser forte para sacrificar a dignidade e dizer a todos, pelo crivo indelével da palavra que se emoldura em livro, quão tristes e pobres são.

Só a força de braço precisa para investir contra a maré é prova cabal de que eles podem ter sido os fracos de antanho, mas são os fortes da contemporaneidade.

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