(Qualquer semelhança com a pega entre o presidente da república e o primeiro-ministro que aquele vai indigitar é mera coincidência)
O estio que entrou no Outono que se faz notar mas apenas no calendário parece perturbar a serenidade e o raciocínio clarividente dos amantes que prometeram um idílio encantador. Porventura – interroga-se agora – o namoro era apenas um golpe de asa, todo cheio de oportunismo. Agora que o parzinho está metido até à goela em arrufos, e que os trazem para a praça pública para que todos os que querem perorar tenham direito ao seu quinhão opinativo, o enlevo romântico não passou de um acordo de conveniência. Como, lá atrás nas fraldas do tempo, havia os casamentos acertados pelas famílias reais.
Ou os que se prometem consortes sentem a alquimia dos sentidos, ou forjar o noivado condena-o à nascença. Não há como enganar: a oportunidade dos afectos, que traz os amantes de conveniência embeiçados, esboroa-se assim que saltam à superfície aqueles defeitos de comportamento que só na ausência de um sentimento genuíno é que motivam uma inadiável irritação. Os pombinhos passam do artificial enlevo para as tiradas assassinas que deixam feridas por cicatrizar. Mesmo que uma esteja quase a sarar, logo depois um deles bombardeia o outro, fazendo jorrar muito sangue de outra, nova ferida em carne viva.
Mas o par insiste. Ora num dia um espeta o punhal bem fundo, ferindo o outro com ofensas imperdoáveis. Ora no dia seguinte encarnam figuras angelicais, jurando a pés juntos e pela sua imensa dignidade que não disseram nada de ofensivo, que é a audiência que exagera no diagnóstico. Pois a audiência gosta é de ver o sangue a soltar-se das feridas que um deles carrega depois do lance covarde do outro. Renovam as juras de amor mesmo que já mal se possam ver, mesmo que as palavras semeiem um mal-entendido, ou sejam treslidas porque ao outro convém treslê-las. A certa altura, as promessas de afectos confundem-se com o cadafalso das ofensas. É quando cultivam um amor-ódio que só para os outros é incompreensível.
Os outros, que desperdiçam o seu tempo com a telenovela mexicana, saciam-se nesses arrufos. Os pombinhos sabem-no, pois não nasceram ontem. Ao menos não há notícia de violência conjugal; ao menos conseguem reservar um vestígio de dignidade, que a sobriedade há muito se ausentou. À medida que cresce o calvário dos enamorados que o teimam em ser apesar do pessoal calvário que atravessam, cavalgam na infantilidade. Servem-se dos aios que se entregam, carne para canhão, às tarefas sujas. As ideias absurdas, os ataques soezes, são sempre dos que compõem o séquito. Importa que não sejam desmentidas? Nada; o que interessa é que se diga que as aleivosias partiram da boca dos seguidores, como se elas não chamuscassem os mandantes.
Dizem, ambos, que têm destinos cruzados. Sintomática, a revelação. Nem precisamos de desatar o ferrolho das entrelinhas: como vão de mão dada, contristados, mandam dizer que fazem das tripas coração para aturar a outra metade do par. O enamoramento nasceu torto, não passa de uma avenida onde apenas se faz de conta. Os consortes nunca foram almas gémeas – arrisca-se o diagnóstico. É o amor que se confunde com o ódio, ou um ódio emparelhado num envenenado, suposto amor. A meio de outro arrufo, de mais um arrufo que gente ajuizada já não tem paciência para aturar, deixamos de perceber se o enlevo se emparedou na purulência destilada pelas feridas por cicatrizar.
Indo ao fundo das coisas, os dois talvez sejam mesmo almas gémeas. De tanto já não se poderem ver, habituaram-se à presença recíproca. Como se o ódio germinasse um paradoxal amor que os mantém amantes.
1 comentário:
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