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Só há prosa épica para toureiros? Escasseia a palavra nobilitante a glorificar o feito do touro. É o espelho de uma luta desigual. Nas arenas onde o touro se ajoelha no definhamento final, é isso que acontece mais vezes. Rareiam as vinganças do animal, quando se aproveita da distracção do toureiro e mete uma cornada que despedaça artérias vitais.
Passam pelos olhos fotografias de um toureiro colhido no México. Múltiplos takes, tirados por diferentes lentes. Os olhos dos fotógrafos muito atentos à coreografia sibilina. Eu diria, o solfejo de uma justiça divina (se disso houvesse). E apetece-me mergulhar num texto épico. De louvor ao bovino preto todo ensanguentado pelas bandarilhas já cravadas no dorso. Porventura há por aí humanistas e acenar em tom de reprovação: na dialéctica entre um homem e uma besta, temos que ficar sempre do lado do humano. Mais ainda quando ele fica à mercê da animalidade descontrolada e paga com o sofrimento estampado no corpo. A simples afloração de sentimentos humanos pelos que padecem de males diversos.
A hostilidade pessoal às touradas fermenta esta insensibilidade. Quero lá saber que me chamem nomes feios por desprezar o sacrossanto humanismo. Quero lá saber, sobretudo quando uns espécimes humanos deslizam para a mais grotesca das animalidades e a turba, talvez ainda mais animalesca, exulta. Admito sem temor: vejo com deleite as fotografias do toureiro na temerária aproximação ao touro cansado e, logo a seguir, o toureiro já sem a espada, a espada vomitada para longe pelo golpe traiçoeiro do touro enraivecido, a perna esquerda do artista a ser beijada pela haste do corno do bicho; outro take: o toureiro a voar, com um expressivo esgar de dor, a perna esquerda já a derramar abundante sangue na vestimenta cheia de lantejoulas; e ainda outra sequência: o matador já deposto no empoeirado solo da arena, uns ajudantes de volta dele a ampará-lo, todos eles conscientes da gravidade do ferimento.
Os olhos consomem aquelas fotografias. Mais que uma vez. Não há o menor rancor contra o animal diante das fotografias que consagram a vingança do touro. Já sei, por aí uns moralistas encanitados, outra vez de dedo em riste, a advertir com severidade: “a vingança é um sentimento aviltante”. E não são eles que afiançam que as bestas, em dose pura de irracionalidade, não têm sentimentos?
O matador esteve quase a ser o seu próprio algoz. Um golpe de asa do animal cerceou-lhe a espada treinada para seccionar a coronária vital do touro. Ao ir pelo ar, a espada ditou-lhe o destino. O aleatório destino que tratava de saber por onde iria entrar a afiada haste do touro, a espada em reviralho. Se há brutalidade naquelas fotografias, não é por o toureiro estar nas mãos do sortilégio de uma estocada. De uma estocada desta vez desferida por quem costuma ser a vítima. O palco e as suas circunstâncias aplacam a comiseração com o toureiro.
Não são os adoradores da moralidade que endeusam a justiça divina? Não são eles que olham para o lado e colocam os seus elevados padrões entre parêntesis quando a inocente vítima se rebela contra o algoz que empunha uma sangrenta espada de estulta superioridade? Deviam ser eles os primeiros a louvar a estocada do touro. A besta evitou que o toureiro fosse o seu carrasco. Adivinha-se o destino da besta que cometeu a ousadia de perfurar uma vital artéria do adestrador das bestas selvagens. Ao menos não foi ali, diante do público que devia estar exultante e, de repente, foi tomado pela apoplexia ao ver o toureiro a jazer no empoeirado solo da arena.
1 comentário:
Por acaso, quando me foram dadas ver as imagens do ataque do touro, logo me acudiu ao pensamento: É bem feito!
Virou-se o feitiço contra o feiticeiro, que tenhas oportunidade de sentir na própria carne, o que andas a fazer ao touro, para veres se gostas! O que mais me indigna, é que nos tempos actuais, que pretendemos civilizados, ainda haja quem sinta prazer em assistir a espectáculos desta natureza. Se bem visto, é um espectáculo imensamente estúpido. O touro havia de ter saltado a arena e despachado para o inferno uma dúzia dos sedentos e macabros espectadores. Se queriam sangue, iam-no ter! Que vissem o deles a brotar-lhe copiosamente das veias.
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