30.9.11

A durabilidade das coisas


In http://www.ego-trip.blogger.com.br/venda_nos_olhos.jpg
Era uma interpelação constante: as coisas deviam ter um prazo de validade? Como saberíamos que a perenidade sempre fugaz (e que interessa a contradição de termos?) se tinha esgotado? Seria quando as vidraças da nossa contemplação se estilhaçassem, os restos dos vidros reduzidos a um insignificante pó esbranquiçado deposto pelo chão imundo?
Às interrogações que não cessavam de ecoar nos corredores do pensamento, as respostas pareciam ausentar-se. Estavam em dívida perante o amontoado de interrogações que acabavam órfãs de explicação. Todavia, a resignação não cavalgava nos contrafortes da angústia. A demora nas respostas, as interrogações que continuavam a morder os lábios do pensamento em fervura, eram prova de vida. Os dedos percorriam o suor do rosto enquanto as respostas tardavam e o deve e haver com as interrogações soçobrava num abismo interminável.
Aquela interrogação – sobre a durabilidade desejável de tudo – era um refluxo contínuo. Um mapa de que andavas em demanda, quase como se nele viesse o segredo para os nós maiores que não se desatavam. Achavas que era a resposta mais importante que as interrogações fermentavam: por ela as mãos não haveriam jamais de perseguir o erro – julgavas. Tudo haveria de ter a sua própria bitola, um vestuário assentando à medida. Andavas em demanda da perfeição. E por mais que vozes avisadas, muitas delas vozes experimentadas, dissessem que não há arte de revelar a perfeição, insistias. Haveria uma bitola que fizesse tudo encaixar na sua hermética medida.
Teimaste na errância por anos a fio. Por fim aprendeste: que não importa medir a durabilidade das coisas. Só nos damos conta que passaram do prazo quando o retrocesso já não é possibilidade. Por fim, encontras a resposta à tão importante pergunta. Pagas a fatura indelével: a por fim resposta encerra a sua própria inutilidade. E percebes que a interrogação existencial era estéril. Porque andavas rendido ao tempo tão déspota, o tempo que açambarca os movimentos e manivela o pensamento.
Não houvesse a traiçoeira deificação do tempo e a durabilidade de todas as coisas não chegaria a subir ao pedestal das interrogações com serventia.

29.9.11

Entrelinhas


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmBGkiLD5B0vV-oPmuHai4R39S7jHqoOSWK9gDfyEm-TQKS9RR1IqxZIVgQmv4TvcbMZTAzlxdRMc8eI4mo4qI_YkA60AAdXks0HeK-fV8IyhFlBZOVb2POH2ET6gVFxh6VA61-w/s1600/entrelinhas.jpg
A carta diante dos olhos, um cardápio de palavras que se desdobra em possibilidades e oculta as insinuações que se farejam nas entrelinhas. São como uma névoa densa que embacia o olhar, ou repetidos copos de vinho que adulteram o raciocínio. As entrelinhas são apenas uma suspeita. Por vezes, as palavras enquistadas no papel são de uma nitidez à prova de dúvida. Através delas desaparece a possibilidade das impossibilidades que fazem tirocínio na amálgama de disformes palavras que se esgueiram na penumbra do olhar. Outras vezes o pensamento confunde-se com os múltiplos sentidos que se encadeiam num amontoado de palavras. Como se as palavras escritas, as palavras ditas, fossem a chave que abre as portas para as palavras insinuadas que vêm atrás.
O pensamento acha-se embotado pela depuração das impossibilidades. À míngua de esclarecimento do autor das palavras escondidas no farol das palavras reveladas, o pensamento debate-se com a impossibilidade das múltiplas possibilidades das palavras escondidas. Há um tempo imenso gasto na hermenêutica das suposições. O pensamento deita-se em palavras apenas imaginadas na sua fermentação. Ele descola do solo, os pés perdem o contacto, anestesiam-se nas elucubrações.
Nas entrelinhas, nas apalavradas entrelinhas que são o soro que fertiliza especulações estéreis, é-se apanhado na adivinhação do pensamento alheio. É a maior das impossibilidades. O mal já está feito. Começou quando alguém sussurrou ao conhecimento que havia entrelinhas. Continuou quando a experiência ensinou que há uns quantos que, covardes, obliteram a covardia na cortina de espelhos das palavras que se supõem em incertas entrelinhas. Adensa-se ao embarcar no cinismo e a ausente frontalidade adestra, em entrelinhas impostas, as palavras que se queriam ditas nos olhos.
As entrelinhas desmembram o entendimento. São um maço de cortinas espessas que se deitam umas em cima das outras, em camadas sucessivas que deturpam o entendimento. Tudo se passa como se à nossa volta se ocultassem diferentes dimensões paralelas. Dimensões que ficam escondidas da curiosidade dos olhares que veem. 

28.9.11

Sedutores em vias de extinção (ainda)


In http://aralumiar.files.wordpress.com/2011/05/david_mourao_ferreira.jpg?w=199&h=137
Pode parecer que fiquei traumatizado com o assunto (foi anteontem, quando aqui trouxe a derradeira invenção de um grupelho de feministas assanhadas: a castração de incorrigíveis playboys). Pode parecer que estou atemorizado. Não há motivos. Não vou, admito, escorregar para a habitual ladainha comiserada dos apoderados pelo desamor, que choram pelos cantos e compõem desamores em prosa e poética. Por aqui, nem oito nem oitenta. O que me deixa à vontade para regressar ao assunto.
De repente a ideia de castrar varões com as hormonas aos saltos que, todavia, não consumaram as investidas, trouxe-me a isto: o que seria da literatura se os poetas que ganharam fama com as trovas de amor, com os poemas que destilam sedução em estado puro, fossem vivos e publicassem esses poemas? Tenho a impressão que as feministas à caça de endoidados pelo sexo contrário não dariam quartel. Haveria brigadas a tempo inteiro espiolhando os livros destes poetas que saíssem para as prateleiras das livrarias. Ai deles que tivessem a ousadia de verter em estrofe versos em que as hermeneutas de serviço decantassem extrações de machismo sexuado. Os poetas, na rota do exílio. Os seus livros, os novos mensageiros das inquisitórias fogueiras onde o herege atropelo das liberdades cresta em lume brando.
Os que não tiveram a fortuna de nascer fora dos tempos conturbados que são estes, embutidos por gente muito sensível que adora espezinhar as liberdades, não tenham o topete de escrevinhar poemas onde exaltam a adoração pelo sexo contrário. Manda a prudência que metam a viola no saco. Eles que aprendam o saber monástico da repressão dos sentidos. Sufoquem os vulcões interiores. Vertam a imparável sedução em palavras depois engavetadas no muito privado e inacessível arquivo (não vá o diabo tecê-las). É que o diabo é um rabo de saias. Ou porque os sedutores não conseguem resistir a um notável rabo de saias (ao que as saias ocultam). Ou porque sucumbem à armadilha dos outros rabos de saia, as bruxas frígidas que patrulham os costumes à fina força.
E se as caçadoras virassem presas? Castrar a eloquência poética é coisa que merece que se vire o avesso.

27.9.11

Como sair da crise: uma modesta proposta


In http://www.grzero.com.br/wp-content/uploads/2011/06/Calendário-2012-e-Feriados11.jpg
Tendo a firme convicção que há um Medina Carreira dentro de todos nós (descontando aquele catastrofismo endémico que arrelia), chegou a minha vez de ensaiar uma proposta para nos vermos livres desta crise tão arreliadora como o negativismo e a assertividade de Medina Carreira.
Não me comovo com o progressismo social que vai às catacumbas do passado repescar um pregão cheio de lirismo: “os ricos que paguem a crise”. Os economistas da esquerda radical, que ainda por cima exibem uma superioridade moral que é, no seu caso, uma contradição epistemológica (manda o relativismo que não existam imperativos categóricos nem moralidades superiores às rivais), são conhecedores do segredo para fazermos o funeral da crise: põem-se os ricos a pagar muitos impostos.
Não digo que estes economistas radicais sejam ingénuos. Eu é que não me considero possuído por este atributo. Por isso alinho mais na receita da moda, que é a austeridade. Primeiro, as autoridades deviam contratar as melhores agências de comunicação, daquelas com capacidades encantatórias, para persuadirem a populaça que tempos tão difíceis exigem a predisposição para o sacrifício pessoal. Depois viriam os melhores psicólogos explicar, em linguagem de gente normal, que sacrifícios pesados são um mal necessário para virar a página da austeridade e, depois desta, a da crise. Só depois viria alguém do governo, em necessária pose grave, anunciar que em 2012 todos (funcionários públicos e não públicos) teríamos de trabalhar 262 dias.
Faríamos os cálculos: quem de 366 (vai ser ano bissexto) tira 262, fica com uma sobra de 104. Como há 52 semanas no ano e cada fim-de-semana atravessa dois dias, estava tudo explicado. Daríamos de graça o trabalho em todos os feriados (sem exceção). Íamos trabalhar no natal, no dia de ano novo, no carnaval, na páscoa, nos feriados políticos (25 de abril, 1 de maio, 5 de outubro, 1 de dezembro) e no resto dos feriados religiosos e municipais. Contratavam-se dois economistas, daqueles muito reputados (e que estão sempre a comentar nas televisões), para fazerem as contas aos ganhos – e teríamos três estimativas diferentes.
Mas ficava ainda uma pergunta por responder: devemos tanto sacrifício individual em homenagem ao “bem comum” quando os responsáveis andam por aí, todos pimpões e ufanos, a transpirar orgulho pela pré-catástrofe que nos deixaram?

26.9.11

Os sedutores em vias de extinção?


In http://fatoregional.com/wp-content/uploads/2011/07/tijeras.jpg
Aperta-se o cerco. O contingente dos sedutores vai mirrar. Primeiro foi a ideia de proibir os piropos. Agora, a pretexto da campanha de limpeza de imagem de Strauss-Khan protagonizada pela diligente internacional socialista, um grupo de feministas exaltadas veio para a rua exigir a sua castração química.
Aqui vai um naco de maldade ideológica (e de flagrante enviesamento): a ideia até me agrada. Aquela prosápia do senhor, a mania que é sedutor, o cheque em branco que a internacional socialista quer passar (eles encobrem-se uns aos outros, qual maralha mafiosa) e, o melhor de tudo, um socialista fundir-se no papel de marialva de início de século XX (quando os socialistas se acham do mais modernaço que existe) faz por momentos repudiar a lucidez. A ideia da castração do senhor cheio de manias faz crescer água na boca.
Entretanto a lucidez regressa. Como se podem sonegar as violações que alguns doentes continuam a cometer em mulheres? Esta podia ser a pergunta de retórica para dar caução à castração química de quem fosse sancionado por crimes sexuais. Mas nessa altura solta-se outra interrogação: estamos ou não, Europa, na vanguarda da civilização contemporânea (com a carga polémica que a expressão contém, admito)? E admite-se que censuremos os Estados Unidos por manterem a pena de morte, ou alguns países que depressa cunhamos com um depreciativo adjetivo (atrasados) por manterem leis penais de uma severidade ímpar, ou que nos arrepiemos com a criminalização que segue o método de Talião (olho por olho, dente por dente) e depois uns sectores que escorregam para o fundamentalismo na defesa das respetivas causas preconizem o mesmo método para punição dos criminosos?ã﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽vçoinho. as  pretende a castraç
Se a moda pega e as feministas frígidas levarem a água ao seu moinho, um dia destes já não há sedutores. Quem quer arriscar a sê-lo, com tamanha sanção? Por este andar, no final da história tudo será asséptico, sensaborão, assexuado. Talvez seja esse o sonho das frígidas feministas.