In http://garatujando.blogs.sapo.pt/arquivo/tempestade%20no%20mar
As
cortinas escondiam a escotilha do exterior. Eram inamovíveis. Não deixavam
espreitar a claridade do dia – nem que a claridade do dia viesse empenhada no
estertor das manhãs embaciadas pelas nuvens plúmbeas, o estertor que se adiava
pela tarde fora. Anotava no bloco de notas algumas ideias avulsas. Podia ser
que no apanhado de palavras dispersas descobrisse um fio condutor.
Depois
da claustrofobia do apertado camarote, as pernas percorriam as ripas
matematicamente alindadas do convés. Por dias a eito, apenas as águas do oceano
por companhia. Às vezes, um peixe audaz que parecia cansado da imersão marinha ensaiava
um salto mortal, mostrando-se aos olhos dos marinheiros que, indiferentes, continuavam
com as suas lides. Houve dias de mar ameno – dir-se-ia que era possível nele
deitar uma mesa de xadrez sem perturbar o equilíbrio das peças. Houve dias de
mar desarranjado, carrancudo, agreste. Os dias escorriam lentos, como a marcha
vagarosa do navio. A certa altura, o mar, de tão imenso, a maior claustrofobia.
De
tanta serventia de tempo disponível, os pensamentos foram revistos, as memórias
postas em ordem. Mas tanto era o tempo sem serventia, que de tanto alinhavar os
pensamentos e rever as memórias uns e outros começaram a perder nitidez. A páginas
tantas, nem as gotas das ondas que transbordavam para o convés conseguiam
trazer lucidez a esses pensamentos; as memórias pareciam embotadas, como se
algum do passado se confundisse entre a espessura do acontecido e a fina camada
dos sonhos.
As
palavras dispersas continuavam a ser anotadas, meticulosamente anotadas, no
diário de bordo. Podia ser que sobrassem uns vestígios aproveitáveis. Alguns
dias volvidos, enquanto o mar alto demorava na paisagem, reparou que a
clarividência das anotações parecia contagiada pela luz clara que beijava o
convés. Ao contrário, as palavras desprendiam-se, pungentes, quando se recolhia
no ar hermeticamente selado do camarote. A escotilha toldada pela cortina
espessa não deixava filtrar a luz clara, e as palavras vertidas no diário de
bordo perdiam o norte do fio condutor.
Dizem
que o mar, o alto e quase infinito mar, é uma fonte inesgotável de criação.
Tudo no seu contrário – sentira ao aportar terra firme. A terra é a mãe
nutriente.
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