Adaptado da edição online do Público (de 08.09.11)
Uma
imagem que encerra todo um programa de intenções: o ex-espião (que raio de
profissão!) a entrar numa sala do parlamento onde ia ser inquirido por causa de
umas inconfidências que terá cometido quando era o espião-mor. Aquele rosto.
Aquele rosto: o olhar desconfiado, os olhos metidos para a frente enquanto o
olhar, o letal olhar, se virava de soslaio para o lado. Os olhos semiabertos,
como se o coscuvilheiro do Estado estivesse de pé atrás, à espera que os
deputados lhe pregassem uma rasteira.
Pode
ter sido da fotografia. O mal até pode ter sido da fotografia. Do momento em
que a obturação foi feita, recolhendo aquele esgar suspeitado do ex-espião da
república. Da fama não se livra. Mas que raio de profissão! Dizem os habituais
condescendentes com a profissional intrusão de agentes secretos em vidas
privadas e nos negócios dos outros países que é um mal necessário, uma
imposição aceitável por causa do superior interesse nacional. E quem define o
interesse nacional que é a caução para que uns bisbilhoteiros de fato escuro
espiem em nome do Estado?
E
não paro de pensar: que raio de profissão! Um espião, ou um ex-espião, verte
para a currículo que é, ou já foi, espião? Imagino que o tal interesse nacional
“imbeliscável” (se é permitida a palavra acabada de inventar) exija que os
agentes secretos vivam nos subterrâneos da existência. Como se fossem fantasmas.
Saia, pois, outra interrogação: para além da sua consciência e da restante
corporação de espiões, quem sabe o que eles fazem na vida? Será que até as
consortes não sabem que quem se deita na sua cama todas as noites é um espião
encartado? (Estou a partir do pressuposto de que esta é uma “profissão” muito
masculina – o que, contudo, podia ser desmentido pelos filmes que romanceiam
profusamente sobre serviços secretos.) Tenho cá uma desconfiança que só entra
na “carreira” aquela gente desqualificada que se habituou a viver por dentro da
vida dos outros, uns voyeurs
sofisticados a quem as intrusões são aplaudidas em homenagem ao quase deificado
valor que é a treta do superior interesse nacional.
De
quem passeia um rosto tão desconfiado, só faz falta desconfiar. Aconselha a
prudência que se desconfie de quem seja profissionalmente desconfiado.
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