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Cão vadio. Errando pelas ruas,
sacudindo as pulgas em pose diletante, os tufos de pelo encardido soltando-se
quando as unhas entravam, fundas, no estuário do pelo. Em conhecendo a espécie
humana, e tendo sido testemunha de açoites em sinal da má têmpera de uns
quantos humanos, evitava os lugares sobrepovoados. Temia um pontapé, ou ser
enxotado com um gesto repentino e intimidatório. Andava à cata de carrinhas
suspeitas, que uma vez vira ao longe um primo a ser caçado com requintes de
malvadez pelos furões camarários que têm o emprego mais néscio.
Havia dias de fome inteira. O
estômago aderia às paredes viscosas do lado oposto. Rondava os caixotes do lixo
espulgando comida despojada. Aprumava o olfato: era o urgente radar detetando alimento
que almas misericordiosas depositavam aos gatos vadios. Nesses dias em que o
desespero rimava com fome, se fosse animal racional e fosse dado a crer num
deus qualquer, faria as suas preces antes de devorar as sobras de comida
abandonadas. Uns primos afastados com que se cruzara haviam advertido que os
restos podem ser um engodo armadilhado, a comida infestada com veneno
irremediável. Os animais que soçobraram ao fastio tiveram aí a sua derradeira
refeição. Mas o fastio subtrai lucidez. Às tantas, a fome é tanta que tudo se
cega. Até agora tivera fortuna. Ouvia os humanos nos lamentos de uma crise
ímpar, mas as sobras acabavam por encontrar seu leito final no lixo urbano.
Até o céu aberto, que era seu
teto, andara complacente. O inverno era madraço, finório, invejoso da parcimónia
primaveril. Ouvia os primos mais velhos a lembrar as invernias insuportáveis,
como tiritavam de frio nas noites que nunca mais davam lugar ao sol que era um
tímido agasalho. Cada dia era um hino à sobrevivência. E cada dia era para ser
mordido com a força toda, como se houvesse mercê de repelir um mortífero ataque
de um algoz humano.
Oxalá muita gente soubesse aprender com este arsenal
de sobrevivência.
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