12.3.12

Sinais de fumo (capítulo XXII)


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Eram muitas noites de sono descontadas às horas em que as dores de cabeça se consumiam em insónias, ou apenas em horas extraordinárias. Os dirigentes que fabricaram a revolução andavam abatidos. Com os primeiros sinais dos mercenários (para já, pequenos atos de guerrilha urbana, apenas o anúncio da grande desordem que estava para vir), permitiram a repressão que criticavam nos seus antecessores. Notava-se um murmúrio do povo, um estranho silêncio que parecia gritar mais alto que os habituais pregões criativos. Eram só dores de cabeça: os dirigentes sabiam, por experiência própria, que os protestos populares podem nascer da ignição de um fósforo e depressa se transformam numa tocha fora do controlo.
Numa alvorada, enquanto se desafaziam de um breve pequeno-almoço, deitaram os olhos à televisão. Um dos canais internacionais passava imagens de diferentes cidades ícone do capitalismo. Os manifestantes passeavam nas casas desertas dos magnatas. Passeavam atónitos, nos corredores, nas salas, nas cozinhas (que ficaram num abrir e fechar de olhos sem os víveres armazenados). Seria a revolução simultânea em todos aqueles lugares? As torradas esfriavam nos pratos, alguns dirigentes estavam boquiabertos, as chávenas levitadas pelo cotovelo que se apoiava na mesa. Sentiram em uníssono: ao início, nem sabiam se ainda eram as sobras do sonho que se insinuavam na insónia da noite mal dormida. Alguns, em negação cativada pela canseira, desviaram os olhos da televisão.
Foram poucos os minutos até o sossego anestesiado do quartel-general ser estroncado pelo frenesim dos jovens assessores que, esses sim, não tinham pregado o olho. Pareciam baratas tontas, tanta a informação que queriam soluçar em pouco tempo. Um dos dirigentes serviu-se da voz da barítono amador e impôs silêncio e ordem. Um dos jovens assessores começou a debitar os factos: por todos os lugares, alguns ricaços andavam em dores de consciência. Admitiram a justeza dos protestos entoados em coro nas avenidas principais. Puseram-se ao serviço do povo, dando toda a força aos movimentos que ajustavam contas com o passado dos capitalistas facínoras.
As portas das mansões foram abertas ao povo. Com lautos manjares para os que viessem com o estômago empenhado ao apetite. Ao fim do dia, conferências de imprensa com os endinheirados entretanto arrependidos. Eles ofereciam os préstimos à revolução ainda em esboço. O maior de todos era a doação da sua imensa riqueza ao povo que, admitiam agora, tinham explorado durante tanto tempo.
Faltava saber se era a redenção que estes ricaços, já todos em senescência, projetaram com tanta, e insólita, generosidade.

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