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Manhã, manhã ainda cedo, as luzes desmaiadas
no crepúsculo da chuva miudinha. No caminho, deixando uma caixa multibanco nas
suas costas, um velho mirrado, desguedelhado, com barba eriçada e vestuário
quase andrajoso. Esquecidos os óculos em casa, e à falta de visão de sobra para
ler as letras pequenas escritas a tinta fina num papel minúsculo, interpelou
com o papelinho em riste: “ó chefe,
importa-se de dizer o que está aqui escrito?”, enquanto o dedo trémulo e
encardido apontava para os números que declaravam os seus pertences bancários (fizera
consulta ao saldo). Ao que respondi “duzentos
e quarenta e três euros e oitenta e sete cêntimos”. Depois veio o esgar de
desconforto do velho.
Podia ser a urgência em saber os
pertences bancários que obrigou o velho a que fosse seu involuntário voyeur. Podia estar à espera de uma
maquia choruda, ou pelo menos mais choruda, e ela ainda não tinha aterrado na
conta bancária. Ou, se calhar, queria ver se a reforma já tinha sido mais
abocanhada pelo cobrador de impostos em que o governo se tornou. O velho que se
esquecera dos óculos em casa tinha tanta pressa que nem esperou pelo dobrar da
esquina onde seria o seu poiso (e dos óculos perdidos). Mal quis saber que um
desconhecido soubesse em que andanças param as finanças pessoais.
O mal é dos menores. Éramos perfeitos
desconhecidos. Rostos anónimos um para o outro. Sê-los-emos mesmo no dia após,
se outro acaso nos fizesse ficar rosto com rosto no meio de uma rua da cidade.
Os duzentos e quarenta e três euros e oitenta e sete cêntimos eram renda parca
para o velho com óculos esquecidos. Ele, entristecido. E eu, voyeur involuntário – mas não, antes
agente caritativo, como quem ajuda uma velhinha de bengala a atravessar a
avenida movimentada, para não ser atropelada pelo desassossego rodoviário.
No papel de voyeur
involuntário, ou antes de agente caritativo daquele velho de visão diminuída,
não sei se evitei o atropelo das finanças desconfortáveis.
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