16.7.13

Manual da generosidade


In http://oliveremberton.com/wp-content/uploads/2012/03/Free-hugs1.jpg
É difícil, a generosidade. Quase sempre, em doloroso abastecimento da introspeção, a generosidade é impraticável. Os tempos de penúria somam pretextos para a decadência da generosidade. Há mais gente em miséria, gente até que não há tanto tempo era remediada. O deserto que atravessamos oculta a janela da generosidade. Ela, impraticável, berra aos ouvidos que se fazem surdos para as carências alheias.
Ensimesmamos. As dores de consciência esbatem nas cinzas dos embaraços, nos sacrifícios que nos apunhalam – ele são os tributos que caem, implacáveis, sobre nós, com os cumprimentos do antropófago fisco; ele são as dores da economia que emagrece os réditos; ele são os afetos toldados pela carestia que é viver. Os ponteiros do relógio repetem-se numa marcha suicidária. O endosso do tempo futuro não é caução de céus soalheiros. A pior tez grisalha coloniza os céus que há por diante. Nem a esperança bastarda do povo chega para esbulhar céus tão carregados. Os corpos seguem contrafeitos na marcha diária, protestando as dores de alma que deles tomaram conta.
Há uma centelha que adorna o crepúsculo que vem com o entardecer. Não tem explicação. Não vem com uma âncora de teóricos que mascaram as dores da alma com um refrigério que apenas pertence ao metafísico. Há imagens que se sublimam, gestos singelos que se perdem entre a mundana artificialidade que não desiste. Os exemplos: fotografias de jovens sorridentes que ostentam cartazes a oferecer abraços a quem passa e que deles leve serventia. Ou uma rapariga envergando vestido lhano a depositar esmola na mão de um novo pobre de Atenas. Ou as pessoas que não querem perder o anonimato quando percorrem as ruas frias da cidade em distribuição de alimento pelos que vivem ao relento. Ou os que não se refugiam num alcácer impenetrável aos afetos dos outros, partilhando os seus, muitos, que afagam outros afetos em busca de correspondência.
Os pretextos são fugas. Inúteis, como são (quase) todas as fugas. Mas que não curem os generosos de demandar a bondade em apelo próprio. Serão generosos em autoajuda. Os que dizem que ajudam, beneficiários colaterais. Não se desestima o préstimo. Mas a perdida pureza embacia o ato generoso assim composto. Um abraço a quem passa, a desconhecida gente que deles careça; o outrora remediado que foi atirado para a indiferença das ruas e vê uma moeda cair na mão; o alimento que mata a fome a quem de outra maneira dela morreria; os amantes que se entregam nos afetos que sobem de valor nos tempos que são escarpados; haja toda esta, e outra mais que se possa cozinhar, generosidade em ponto de açúcar.

1 comentário:

Museu Nacional de Soares dos Reis disse...

Generosidade. Começou por ser uma palavra suave com uma tonalidade bonita. Com o passar do tempo a palavra começou a adquirir outros tons menos harmoniosos. Começaram as leituras juvenis. Depois da leitura de "Aurora: Reflexão sobre os preconceitos morais", de Nietzsche, entre outros, a "generosidade" começou a revelar-se, ou seja, por detrás do significado que ela acolhia, considerado nobre e supremo, escondiam-se outras possibilidades de interpretação. Uma delas era: "manifestação de egoísmo, algo que fora esquecido pelos arautos da moral(...)". A partir dessa altura, sempre que dedicava um pouco de tempo a tentar compreender a "generosidade" perdia uma letra. Hoje, perdidas todas as letras, apenas em raríssimas situações vejo o reflexo daquela que um dia achei ser uma palavra bonita.