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Não saía sem a máquina
fotográfica à rua. O tempo, que transbordava no estertor da inatividade
forçada, era tomado com a observação de rostos, de casas, dos seus detalhes que
estariam escondidos não houvesse o olhar ficado acutilante na pose de observador
compulsivo.
Estudava os lugares e as
pessoas antes de as meter dentro de uma fotografia. Às vezes não era possível
esse vagar estudioso. Às vezes, o retrato era função de um instante. Se não, a
oportunidade dissolvia-se. E, às vezes, nem dava conta do tempo passar, ocupado
na errância pelos rostos e lugares e casas que se ofereciam, sem oferta que
fosse voluntária, a uma fotografia sublime. Gostava de jogar com as cores e as
sombras. Gostava de sentir que as fotografias eram espelhos em sucessiva
reposição, por detrás de cada sombra que decaía da imagem retratada.
Os rostos não eram
fotografados ao calhas. Os pés metiam-se ao caminho, em ruas movimentadas ou em
ruas sossegadas, que um rosto enigmático descobria-se sem critério nem
levantamento de probabilidades. Arriscava punição severa, não pedia licença aos
rostos, nem às casas ou às paisagens, para serem metidos dentro de uma
fotografia. Os rostos emoldurados podiam protestar pela invasão. Não fosse ser
apanhado na curva traiçoeira, ia preparado para reações adversas dos rostos aleatoriamente
retratados. Punha aparência de turista (um panamá desajeitado, umas sandálias
no verão, uma pose estudada de quem anda por ruas por onde nunca andara), e nunca
teve contratempos.
Antes do deitar, demorava
horas a armazenar as fotografias amealhadas ao cabo da jornada. Aproveitava
para jogar outra vez com as cores, beneplácito dos filtros do programa
instalado no computador. Na parede do escritório continuavam expostas as
fotografias que eram suas obras-primas. Uma velhinha cansada ao sol de inverno,
o xaile colorido a afagar o dorso enquanto as mãos acariciavam um gato poltrão
à espreita da luz soalheira. Um marinheiro eslavo de rosto fechado, as
mandíbulas apertando-se iracundas a descer do navio em passo acelerado, as
gotas de chuva que pareciam inertes ao cair. A procissão noturna com imagem
desfocada, a câmara captando o cortejo por trás, a imagem desfocada ao ponto de
apenas se notar a constelação de velas incensadas. E o polícia com olhar
dividido entre a criança que ensaiava malabarismos no skate (num sentido) e a jovem curvilínea que hasteava lascívia
enquanto ostentava um andar provocante (noutro sentido).
E um autorretrato que só ele
conseguia discernir, o fotógrafo encerrado num chapéu farto, tirando-se o
retrato na confluência de uma esquina com um edifício envelhecido e o espelho
que facilitava o trânsito no beco apertado. Era um detetive das imagens
furtadas aos outros.
1 comentário:
“É sempre outra coisa,
uma só coisa coberta de nomes”.
Herberto Helder
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