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Queridas crianças: devem
andar assarapantadas por estes dias. Os vossos pais só falam da crise – e dizem
que agora a crise é política, que deixou de ser apenas a economia a morder os
calcanhares das famílias. Ouvem os vossos pais, enquanto amesendam diante do
telejornal, a chamar nomes feios aos senhores do governo que se zangaram um com
o outro. Aposto que alguns de vocês, aqueles que já se entediam com a
copiosidade de ferramentas lúdicas, ouviram pela primeira vez as vozes graves de
jornalistas engravatados e de uns senhores, a quem chamam “analistas” (também
engravatados), a distribuírem pragas pelos que mandam na vossa terra.
Podiam estar entretidos com
os momentos lúdicos que a tecnologia tornou abastados. Agora que vos mete
espécie a ira dos vossos pais e o tom moralista dos “analistas” e dos
jornalistas – “a coisa deve estar séria”, pensam com os vossos ainda pequenos
botões – é devida uma explicação. E já que tanto gostam de jogos, a explicação
começa com um jogo que ainda são novos para jogar: o xadrez. As peças do xadrez
dispõem-se no tabuleiro. Em cada equipa, as peças mais importante são o rei e a
rainha. Um matrimónio. Já devem ter aprendido (por mote próprio, aí em casa; ou
pela experiência documentada pelos colegas da escola), que às vezes os
matrimónios batem no fundo. Os consortes desentendem-se. Por razões importantes
ou por coisas sem significado. Às vezes há casamentos por conveniência. Ou casamentos que acabam por se tornar, com o
tempo e com a chama que se apaga, casamentos de conveniência. O rei e a rainha continuam a coabitar a mesma
casa, mas dormem em quartos diferentes. Mal se falam. São casamentos por um
fio.
À frente do rei e da rainha
aparecem os peões. (Somos todos nós, os governados e que pagamos os impostos
sem contraditório.) Os reis não hesitam em sacrificar uns peões para manter
estatuto. Às vezes, as crises matrimoniais que viram o rei contra a rainha (ou
vice versa) são jogos feios de que prefiro não vos explicar as regras e os
comportamentos. São jogos de poder. Nos equilíbrios e contra equilíbrios desses
jogos, os peões são as vítimas preferidas. Já deitados pela debulhadora dos
sacrifícios, são atropelados pelas táticas soezes do rei e da rainha entretidos
na crise conjugal.
Do outro lado do tabuleiro
estão as peças da outra equipa. Com a mesma disposição de peças no tabuleiro.
Ansiosos por meter a mão no poder, o rei e a rainha respetivos. Proclamam-se os
legítimos defensores dos peões indefesos. Prometem jogadas que amparem os peões
que foram atirados para a penúria. São ilusionistas, este rei e esta rainha.
Mentirosos antes do tempo, prometem muitas promessas. Encantatórias. Seduzem os
peões à sua frente, que depressa se desfazem em respeitosas genuflexões. Os
reis à espera de trono estão a atirar, para memória futura, os peões aos leões.
A diferença é nenhuma.
Um dia destes, lá na escola,
quando vos requisitarem num daqueles momentos de criatividade que é modismo das
vanguardas pedagógicas, proponham a reinvenção do xadrez. Proponham que o rei e
a rainha, mais os figurões que os ladeiam (os bispos, os cavalos e as torres),
avancem para a primeira fila e deixem na retaguarda, protegidos como devia ser,
os peões. Teria outra vantagem: aquelas manifestações de rua com duzentos
descontentes a exigirem, em nome de todos os peões (desconhecendo-se que tenham
sido mandatados), que a realeza seja decapitada, essas manifestações passavam a
fazer parte da arqueologia (política). Sempre era menos folclore a poluir o
ambiente.
E vocês, queridas crianças,
seriam uma lição para os doidivanas mais velhos.
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