22.7.13

Um copo de vinho


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Diz ao que vens, não percas tempo”, foi célere no repto enquanto entreolhava as sombras que se compunham no copo de vinho tinto, inclinado para decantar a luz no carmim tintado que era seu conteúdo. E, apesar de estar sentado e de quem o interpelava estar de pé, logo, numa posição altiva, parecia que a lei da gravidade se tinha virado do avesso, tanta a reverência que condenava o rapaz numa inércia aflitiva.
Tinha tanto para dizer, ensaiara durante tanto tempo as palavras que queria proferir, e a reverência diante da personalidade da música tinha paralisado os sentidos. Era como se a língua se enrolasse num silêncio atroz. O músico continuava à espera que o silêncio se desfizesse, tragando breves golos do vinho certamente de primeiro calibre. Foi mantendo a paciência enquanto o copo estava vestido com o néctar das uvas. Mal esvaziou o copo, esgotara-se a paciência para ser contemplado em silêncio por um (mais um) admirador. Rude, voltou a dizer o que fora início de conversa: “diz ao que vens”, metendo uma breve pausa para refazer o final da frase que já havia sido dita, ao rosnar, indisposto, “que fazes perder o meu tempo”.
O rapaz continuava imóvel, sem saber o que dizer, apesar de todas as palavras e mais algumas que corriam, vorazes, nos interstícios do pensamento (que esse continuava a viajar a uma velocidade cósmica). O músico levantou-se. Como cambaleou, adivinhava-se um estado ébrio. Disfarçava, contudo. Talvez fosse o hábito, pois fazia-se constar que os grandes artistas abusam das substâncias, legais ou não, que adulteram os sentidos. Nem a língua se entaramelou quando, num inesperado acesso de paciência, pediu que lhe repusessem o vinho no copo e que trouxessem outro para o rapaz em hibernação. O rapaz balbuciou um agradecimento enquanto o artista lhe passava a mão pelo dorso, convidando-o a sentar-se no sofá à sua frente. “Bebe. Pode ser que a língua se solte. Tenho a impressão que tens coisas interessantes para me dizer.
O staff de apoio do artista estava incrédulo. Ele, conhecido por maltratar quem o endeusava, abriu uma exceção. Devia ser do vinho. Fazia-se constar que aquela casta tinha propriedades singulares. Dizia-se que não havia vinho melhor para bem dispor os bacantes. Parecia que o vinho fazia jus à fama.

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