In http://www.cascavelgourmet.com.br/uploads/images/vinho.jpg
“Diz ao que vens,
não
percas tempo”, foi célere no repto enquanto entreolhava as sombras que se
compunham no copo de vinho tinto, inclinado para decantar a luz no carmim
tintado que era seu conteúdo. E, apesar de estar sentado
e de quem o interpelava estar de pé, logo, numa posição altiva, parecia que a lei da gravidade se tinha virado do
avesso, tanta a reverência que condenava o rapaz
numa inércia aflitiva.
Tinha tanto para
dizer, ensaiara durante tanto tempo as palavras que queria proferir, e a reverência diante da personalidade da música tinha paralisado os sentidos. Era como se a língua se enrolasse num silêncio atroz. O músico continuava à espera que o silêncio se desfizesse, tragando breves golos do vinho
certamente de primeiro calibre. Foi mantendo a paciência enquanto o copo estava vestido com o néctar das uvas. Mal esvaziou o copo, esgotara-se a paciência para ser contemplado em silêncio por um (mais um) admirador. Rude, voltou a dizer o que
fora início de conversa: “diz ao que vens”, metendo uma breve pausa para refazer o final da frase que
já havia sido dita, ao rosnar, indisposto, “que fazes perder
o meu tempo”.
O rapaz continuava
imóvel, sem saber o que dizer,
apesar de todas as palavras e mais algumas que corriam, vorazes, nos interstícios do pensamento (que esse continuava a viajar a uma
velocidade cósmica). O músico levantou-se. Como cambaleou, adivinhava-se um estado ébrio. Disfarçava, contudo. Talvez fosse o hábito, pois fazia-se constar que os grandes artistas abusam
das substâncias, legais ou não, que adulteram os sentidos. Nem a língua se entaramelou quando, num inesperado acesso de paciência, pediu que lhe repusessem o vinho no copo e que
trouxessem outro para o rapaz em hibernação. O rapaz balbuciou um
agradecimento enquanto o artista lhe passava a mão pelo dorso, convidando-o a
sentar-se no sofá à sua frente. “Bebe.
Pode ser que a língua se solte.
Tenho a impressão que tens coisas
interessantes para me dizer.”
O staff de apoio do artista estava incrédulo. Ele, conhecido por maltratar quem o endeusava, abriu
uma exceção. Devia ser do vinho.
Fazia-se constar que aquela casta tinha propriedades singulares. Dizia-se que não havia vinho melhor para bem dispor os bacantes. Parecia
que o vinho fazia jus à fama.
Sem comentários:
Enviar um comentário