13.12.13

Do rude outono (da vida) (II)

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O que Hilário não sonhava, no seu desprendimento rotineiro, era a observação de uma donzela que – pudera alguma vez sonhar – não seria de sua cepa. Catarina, um par de anos mais nova, era sobrinha dos feitores da quinta. Aparecia algumas vezes, que se dizia à boca pequena que andava desavinda de amores pela grande cidade e descontente com a profissão que levava. Aparecia por temporadas e depois desaparecia na mesma nuvem efémera que a tinha trazido.
Catarina já tinha reparado no camponês silencioso que não procurava a companhia dos outros camponeses, fosse na pausa para a bucha antes que a tarde começasse, fosse ao partir para a quietude da casa. Metiam-lhe impressão as mãos grossas e marcadas, como se aquelas rugas suplantassem as rugas que a idade, precoce nos camponeses, desvenda no rosto. E metiam-lhe impressão as mãos imundas, o que não era desmerecimento, mercê do árduo labor dos camponeses. Interrogava-se se os camponeses como Hilário tinham os mesmos cuidados de higiene em que fora adestrada. Via-os partir ao cabo da longa jornada, banhados em suor e tomados pela poeira ou pela lama (consoante o tempo que se tivesse posto) e na temporã manhã seguinte não notava diferença.
Por causa da solidão em que se acantonava, julgava que Hilário era um tímido. Tirou informações e soube que não se lhe conhecia família, nem nestas paragens, nem da terra de onde vinha. Nas sua elucubrações, Catarina interrogava-se se aquele homem rude sabia o que era o afeto. Ele não olhava para as mulheres da quinta, mas podia ser preconceito social que os da sua laia lhe incutiram – não podem os camponeses ter a ousadia de desviar o olhar para as mulheres de outra casta. Corriam histórias, de ouvido em ouvido, de que no passado tamanha heresia terminara em tragédia, com um peão audaz morto em circunstâncias estranhas, a polícia depressa diligente em terminar o caso por falta de provas.
Catarina procurou saber o que contavam essas histórias. Os tios desviavam a conversa. Os avós faziam um esgar contrariado e perguntavam, em tom de quem a procurava demover da curiosidade, qual a razão do interrogatório. Ela percebeu que esta curiosidade era a fivela de um súbito e estranho interesse por Hilário. Arrepiou-se quando confirmou o diagnóstico. Era lá possível desatar o interesse, nem que fosse pelos mais inconfessáveis e íntimos motivos, por um homem tão desinteressante?
Hilário continuava absorto no seu pequeno mundo interior. Era incapaz de notar as investidas silenciosas de Catarina, que andava por perto, observadora. Outro camponês, mais velho e experiente, observador exímio das condutas humanas, segredou-lhe que a sobrinha endemoninhada dos feitores andava ao largo e que sobre ele deitava olhares cativantes. Desprevenido, Hilário pediu para não haver sobre si tamanho escárnio, que ele era de paz e não perturbava ninguém. Que o velho se deixasse de toleimas, que talvez a lucidez se começasse a ausentar. E nem assim Hilário resolveu levantar a cabeça de cada vez que passava uma senhora pertencente à casta dos patrões. O seu mundo era outro. Desapossado de afetos e carente de sossego. Sem sonhos, sequer.

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