12.12.13

Do rude outono (da vida)

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Hilário findou a jornada no campo. Descansa no alpendre da casa maior da quinta enquanto espera ser pago pela semana que findou. O entardecer deixa sob o seu olhar um sol mortiço, tímido neste outono que já pressagiava a invernia, a transigir perante a noite. Passa as mãos encardidas pelo cabelo ralo, o cabelo espesso mercê da poeira que o arrotear do campo foi sedimentando no cabelo. Não era o grisalho revelador da meia-idade, mas um acobreado que condizia com a paisagem (as folhas caducas e para lá de amarelecidas; e a rugosa cor do entardecer, mais acobreada por causa da altura do ano, em que o sol ia baixo todo o dia).
Forrou uma das algibeiras com o maço de notas que, rudemente, o capataz entregou. Ia a tempo de um desvio pela tasca, que os bolsos forrados de dinheiro caucionam vícios. Pediu ao motorista que o deixasse no cruzamento de onde o passo estugado depressa chegaria à tasca. Entrou no antro. Jogava-se à sueca a um canto. Outra mesa era de intensa discussão sobre o fenómeno da bola, entaramelada com boçais dizeres sobre mulheres. O tasqueiro não tinha mãos a medir entre pedidos de vinho em copos de três e petiscos que abriam o apetite para o jantar que as consortes preparavam no remanso do lar.
Hilário pediu um copo de três – do melhor palhete que a casa guardava em pipa especial. Assim como assim, eram tantas as plúmbeas nuvens a pairar no horizonte, com incessantes histórias da crise que fermenta despedimentos, que não sabia se na próxima semana podia esperar pela jorna enquanto admirava o céu tomado pelo entardecer radioso no alpendre da casa maior da quinta. Pediu outro copo de três, do vinho da mesma igualha – que não importava que pagasse três quartos mais pela qualidade vertida no pequeno copo. Para acompanhar, um sanduíche de presunto, do presunto da melhor estirpe. O tasqueiro não queria saber dos parcos haveres de Hilário. Desde que o serviço fosse pago no ato, o cliente que pedisse o que lhe aprouvesse.
Hilário demorou-se na tasca. Ao contrário dos outros que por ali amesendavam, não tinha consorte à espera em casa. Aliás, o pardieiro onde dormia mal se podia chamar casa. Era um pousio sempre temporário, para repousar os ossos quebrantados depois de uma dura jornada de trabalho. Noites havia que se entregava à cama sem despir a roupa conspurcada que trouxera do campo. O banho ficaria para segundas núpcias, talvez na véspera de sábado, que sábado era dia de bailarico na aldeia vizinha – e de cuidar das unhas, que não podiam ter a lúgubre apresentação dos dias normais. Hilário adormecera mais depressa; era o efeito do vinho. Sonhou com sereias que não faziam de conta da sua feiura. Sereias que não comentava a ausente higiene, nem a rudeza de modos – coisa que ele não entendia, habituado à rudeza de modos de quem labora no campo. Sonhou que era senhor do seu pedaço de terra, que amanhava sem ordens de nenhum feitor. Sonhou que o outono da vida, a rude roda outonal à qual tinha sido atirado pela meia-idade, tivera retrocesso. Achava-se mais juvenil, jovial e magro, admirado pelas donzelas que (ao contrário dos costumes) o cortejavam.
Acordou com o cheiro pestilento vindo de uma das botifarras, daquela que pisara o estrume perdido por uma rês. Ou seria do odor da estrebaria contígua, que o desnorte não autorizava lúcido entendimento.

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