5.12.13

O rio é uma centelha

In http://dnr.wi.gov/topic/Lands/WildRivers/images/BullFalls3_700x288.jpg
Para lá dos altos prados, num lugar remoto onde as rochas graníticas se afundam numa cova fecunda. Nesse lugar, onde um fino fio de água sobe das entranhas, um frágil regato escorre devagar pela pouca inclinação do terreno. Há rios que perecem na sua nascitura forma, quando as entranhas padecem de estival aridez na ausência demorada da chuva que seria seu manancial. Mas este é um rio bravo, até quando num quase impercetível fio de água desafia os elementos e o frio glaciar do inverno, nunca se depondo em sólida forma do gelo que adorna os montes à volta.
Um pouco à frente, aproveitando o declive do chão que se afunila em voraz precipício, o rio acelera a marcha. Até lá recebe outros, esparsos, mantos de água que o engrossam. Quando se despenha no desfiladeiro já ganhou a feitoria de um rio visível. Dissolve-se em espuma enquanto esvoaça antes de se estatelar com fragor nas rochas alisadas pela interminável erosão das águas em sua queda. Empreende o rio uma viagem alucinante, emparedado pelas margens. As águas insubordinam-se em seu leito sitiado, rumorejando uma fúria infantil e, todavia, medonha. Dizem os habitantes locais que nunca alguém se aventurou nas alvoraçadas águas do estreito leito. O rio é atirado às feras, faz antecipado tirocínio das contrariedades. Depressa o rio se converte em fera e as pessoas contemplam as águas amotinadas com admiração e temor.
Mas o rio cansa-se dos solavancos que o destemperam. O terreno ajuda quando se aquieta das alturas e oferece um leito suave, já sem o espartilho das margens ameadas por altas muralhas. Acalma-se, o rio. Já está maduro para receber outras águas, os nutrientes arrematados pelos afluentes que a ele vêm. Não adultera a sua identidade, que o curso maior de água é ele que o transporta. À medida que na sua embocadura desaguam os afluentes, o rio começa-se a transfigurar. Já não é o manancial puro com alimentação telúrica, o rio indomável que conheceu a paisagem das altas montanhas. Águas outras temperam-no, ensinam a olhar com olhos diferentes para as paisagens que desfilam no horizonte.
Ao envelhecer, o rio agiganta-se. Alarga-se em sítios onde as margens contrárias se distanciam por léguas. O movimento das águas quase não se nota por entre a quietude do leito madraço. Uns poetas consagraram versos arrebatados à luz que o rio empresta à cidade que é seu derradeiro apeadeiro. Pressagiando o decesso, quando o rio por fim se entrega nos braços da vastidão do mar. Um paradoxal óbito, proclamavam esses versos: na sua senescência, era um fulgor de vitalidade, um largo leito reivindicando o respeito de quem nele deitasse o olhar.
Os poetas estavam equivocados. Quebrados versos na sua finitude, que o rio não tinha cais final quando as águas suas se misturavam com as do mar. A entrada no vasto mar era um lampejo do rio, que vem adocicar o salgado mar. O seu leito acamava, em lenta diluição, no mar. A altivez do mar era também um quinhão da altivez do rio que nele de deitou. Provando que não era a foz o lugar do seu decesso.

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