31.1.14

Cisma grisalho

In http://m.webrun.com.br/imagens/fotolegenda/1336.jpg
A rebelião da terceira idade. Na sanha tributária que os apanhou na lavagem de vítimas, os grisalhos e calvos assistiam à dieta das pensões de reforma. O seu ideólogo fora ministro das finanças e era um curador da igreja católica junto do poder secular. Convertera-se em sindicalista, para surpresa da audiência que nunca o vira tão ativo na defesa de uma causa (nem quando os assuntos fraturantes metiam costumes ao barulho) e com uma retórica agressiva, ao jeito dos sindicatos com linhagem radical. O movimento do cisma grisalho tinha um operacional: um coronel balofo, sem doutrina conhecida a não são os atropelos à gramática, e que, num habitual momento de destravamento semântico, prometera desancar os mandantes à paulada.
O cisma grisalho começou a ganhar forma. Os reformados não aceitavam o assalto às pensões. Reclamavam direitos que se ancoravam nos descontos que fizeram pela vida fora. Ninguém lhes explicou (nem o diligente ideólogo) que na vida ativa descontamos para pagar as reformas de quem deixou de trabalhar por ter chegado à terceira idade. O esclarecimento não importava: a fúria embaciava o entendimento. Decidiram organizar-se. Haveriam de mostrar a revolta, morder nas canelas dos que tinham o leme do poder, dobrar-lhes o braço, pela força se preciso fosse. Começariam pelas palavras; aliás, essa empreitada já começara com as intervenções públicas do ideólogo, pondo-o do lado contrário de quem sempre apoiara.
Mas a surdez dos mandantes convocava outros meios, mais radicais. O descontentamento ordeiro tinha limites. Uns tempos antes, o coronel balofo dera o mote. E se aos mais novos, com mais físico para ações que pediam a coragem do corpo, não se desembainhava o empenho, seriam os grisalhos a tomar conta da empreitada. Mas os ossos já doíam, o cansaço apoderara-se do corpo, decaído na má forma. Os propósitos radicais reclamavam um corpo mais apto. As brigadas grisalhas começaram a invadir (na pacífica aceção da palavra) ginásios, aproveitando promoções de uma popular cadeia de ginásios. (Saber-se-ia, depois, que o dono da cadeia de ginásios, por fraternidade geracional, isentara os grisalhos da mensalidade.) O cisma grisalho estava a germinar. O coronel sacudia a poeira do uniforme. Os grisalhos desenferrujavam os ossos e convocavam a coragem que andava ausente dos mais novos. Já se falava, em linguagem cifrada, que o vinte e seis de abril não tardava. Seria outra dívida de gratidão aos agora grisalhos.
A revolta durou um dia. O ideólogo não sabia de táticas militares e sobre-estimou o apoio popular à causa. O balofo coronel estava desatualizado, era uma sombra da sombra que sempre fora. Os grisalhos não aguentaram o pleito.

30.1.14

Nas costas das ondas

In http://lounge.obviousmag.org/entre_ocio_e_sonhos/2013/01/10/clark%20little7.jpg
O outro sonho do menino segredava ambição. Não era só deitar os olhos no mar. Já de si, era tarefa ousada; na aldeia, ninguém sabia como era ver o mar com os próprios olhos. Não era só deitar os olhos no mar, a ambição do menino: queria ver como o mar se deitava na praia. Queria, em dia de maré viva e ondas medonhas, que um estorninho fosse seu cicerone adejando as ondas que se despenhavam, furiosas, sobre a praia.
O avesso do mar intrigava-o. Pretendia ter o olhar desigual das pessoas que admiram a turbulência do mar no rescaldo de uma tempestade. Elas contentam-se em ser testemunhas frontais do mar. São como um cais atento que recebe o mar irado que se esgota nas areias remexidas. Mas as pessoas não conseguem voar aos bastidores das tempestades. Não sabem como são as costas do mar. Oxalá soubessem – interiorizava o menino. Talvez a sua têmpera mudasse. Talvez não abjurassem a tolerância. As pessoas entendiam-se umas com as outras, numa concórdia fermentada pelo conhecimento dos ângulos diferentes aos que estão acostumados. Ou – continuava a sonhar o menino – oxalá pudesse ser ele a contar as peripécias de um voo sobressaltado pelo vento inquieto sobre o mar encapelado. Queria que as pessoas acreditassem na sua narração. Queria ser escrupuloso na descrição das ondas no seu avesso. Para que todos soubessem que há um corte de alfaiate que não quadra com a normalidade que impera.
O menino sonhava controverso. Na sua inocência, nem desconfiava que há muita gente entediada com os que prometem descerrar os lados escondidos. A perturbação da ordem seria infâmia sem perdão. Mas o menino está no tirocínio da existência. Ainda não aprendeu a entender os crescidos. Nem sonha como é a tremenda complexidade dos crescidos. Quando ele próprio crescer e for apresentado aos primeiros laivos dessa complexidade, vai passar um mau bocado. A menos que continue mergulhado nos fantasiosos sonhos e diligente nas epopeias que promete travar. A menos que se lembre das costas das ondas e do recorte diferente do naco de terra que se aclara quando a ondulação se desfaz em espuma efémera.
O menino só sabia uma coisa: os seus sonhos são maiores do que o mundo inteiro.

29.1.14

O menino dos olhos baços

In http://amorimarcos.files.wordpress.com/2011/07/2334518.jpg
O menino crescia nos sonhos. Por exemplo: metia as mãos na areia do deserto, a única paisagem que alguma vez os olhos tinham visitado, e tirava-as molhadas. Fechava os olhos e conseguia sentir as mãos dentro de água, da água que não existia em milhas à volta (a não ser no oásis de onde os mercadores a traziam à aldeia). Fechava os olhos. E via-se a mexer nas águas vagarosas que desciam o caudal de um ribeiro guardado por fetos e árvores. Às vezes, quando os sonhos cavalgavam no dorso de um alado cavalo, via as mãos mergulhadas na água do mar que rastejava até beijar a areia que era sua orla.
O menino fechava muitas vezes os olhos. Sonhava – e era o entretenimento preferido. A imaginação tomava conta do pensamento e ele levantava voo da miséria da aldeia sequestrada pela aridez do deserto. Viajava pelos lugares improváveis. Desembaraçava-se das peias de que não era culpado, das peias que o sitiavam. Quando os olhos rompiam o usufruto dos sonhos, cuidava de retratar os sonhos em desenhos pueris. Os adultos não entendiam os desenhos: os mais boçais reservavam palavras cruas, desdenhavam dos desenhos, que eram “gatafunhos”, tempo perdido que o menino não usava na ajuda ao tratamento das reses e das utilidades da casa.
O menino fugia para dentro de si. Dos outros meninos também, dos que ostentavam a tristeza maior que era a infância locupletada pela pobreza e pelo infortúnio de terem nascido em terra amaldiçoada. Mas o menino não capitulava à melancolia a que os adultos diziam que estava destinado. Enxugava os olhos marejados a cada ralhete e ensimesmava-se numa torre de Babel que era só sua, impenetrável aos outros porque dela os outros não tomaram conhecimento. O menino enxugava os olhos à medida que levitava nos sonhos vorazes. Os olhos ou eram um rosário de lágrimas, ou baços no trautear do quotidiano a que estava fadado se da aldeia não se evadisse. O sonho da evasão secava as lágrimas.
Nos sonhos imarcescíveis, onde era Aladino que ungia bondade e derrotava a miséria dos infantes, uma resplandecência singular emprestava-se aos olhos. Nos sonhos que não eram proibidos, o menino era maestro do seu devir. Lá, onde os olhos não podiam ser baços.

28.1.14

Story teller

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEimWuG1f4oQE2xXUb9HdIkmEOCqx0STxpmWr7_EFS9GIpdImzpdJDvS0NmAUqVdJU6diQEeZXOn0jaiWq3Mqefd4ZtaCp2w-Q0Q3PshZRCwfT-FPPemZ199xmMBz1eBsJTTTlst/s1600/storyteller.png
A figura galã era o princípio de tudo. A extroversão arroteava o demais.  Faltava um ingrediente: não tinha remorsos pela mentira com que convencia os outros. Era um íntimo desejo que não conseguia reprimir, o fazer-se passar por quem não era, incarnando personagens que eram ficção de si mesmas. Quando sentia as personagens esgotadas, depois de narrar, com uma seriedade impassível, todas as histórias que desaguavam no imaginário estroina, batia em retirada.
O nomadismo irrecusável era o fermento que tornava as entranhas em ebulição, como se sentisse o sangue a ferver de cada vez que sentia que tinha sido de mais o tempo no mesmo lugar. Partia, então. Quando chegava ao lugar que já não era ermo, era outra personagem. Eram outras as histórias para pespegar aos incautos. A certa altura, já não se contentava com o logro dos ingénuos, que ele sabia distinguir ao longe. Observador nato, a experiência de vida e os muitos lugares demandados sancionavam uma lente perita sobre os olhares, medindo o calibre das personalidades com o rigor de um termómetro. A certa altura, já só se chegava aos que se julgavam de espírito rijo. Àqueles que se consideravam incorruptíveis. Pois o logro em que os apanhava, tinha-o como uma corrupção dos sentidos.
Já fora tanta coisa. Engenheiro de barragens. Violinista de orquestra sinfónica. Amestrador de focas. Tradutor de indiano. Curador de desvalidos, através das missões caridosas à volta do mundo. Cabeleireiro. Ativista de direitos humanos. Escansão. Escritor de literatura policial. Espião (sem nunca revelar, nas histórias contadas, que o era). Jogador de póquer profissional. Ator de filmes de quinta categoria, rodados em países do leste da Europa. Galanteador nas horas livres. Negociador de joias (mais tarde, de petróleo). Conselheiro político de governos africanos. Viajante, apenas viajante (quando decaía na improvável opacidade da imaginação).
Nunca admitia a mentira. Os ardis eram façanhas interiores. Uma prova de que  rebatia os remorsos. A páginas tantas, nem ele percebia o que era. Já era vítima da esquizofrenia em que se acorrentara. A mentira, assim sendo, não era mentira. Era a ilusão em que se consumia. Havia uma interrogação que nunca admitiu que invadisse a consciência: de quem fugia para ser tantas personagens diferentes?

27.1.14

As más fantasias dos socialistas

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjPntSVVQVKvIUOAhL8pSOQCxlB8a3FDnjDOoB0wLCY4ohxvLmIRHcmnXXhnczuGyB26N5ktBKc7-2hLn5iYJzXtqZuqC8zj_ELbiLbXGuXfruM_5Ft_rbhtE_a0uO902u13tRp/s1600/2-9.jpg
As generalizações não são boa medida. Também sei que há uns anos satirizei uma crónica de Joana Amaral Dias, sex symbol da extrema-esquerda, dos dragões e de muita outra gente, certificando que só a malta de esquerda era boa praticante na arte do sexo. Por isso corro o risco de ser acusado de incoerência com a sátira que se segue à ex-promessa da esquerda modernaça, o então ainda candidato à presidência francesa, François Hollande.
Não tenho nada com os devaneios privados de Hollande. Deixaram de ser privados, é certo, porque o senhor é presidente da França e muitos olhos seguem-no com atenção. Mas, em pensando bem, quando um anónimo cidadão das nossa redondezas descai no pecado de adultério, toda a gente comenta e interioriza o papel de juiz dos comportamentos alheios; por maioria de razão, não admira que muita gente tenha opinado sobre a carne fraca de Hollande.
Mas não é isso que interessa. Consta que Hollande quis esconder o pecadilho e montou, com a ajuda dos serviços secretos, uma imaginativa (julgavam) operação de disfarce para que o presidente francês pudesse ir ao encontro da amante sem ser descoberto. A fantasia não se distingue pela criatividade e pelo bom gosto. Alguém do círculo de Hollande (ou o próprio) inventou um disfarce de estafeta de pizza, com indumentária a preceito, para entrar nos aposentos da concubina e os dois se entregarem a uma noite de lascívia. Usando a teoria Joana Amaral Dias, dir-se-ia que Hollande (ou quem encenou por si) é de direita. (Por estes dias, depois da conversão de Hollande ao catecismo da austeridade – disfarçada com um eufemismo: “rigor” –, não é novidade.) Foi um dia de imaginação ausente. Paris terá visto pela primeira vez um estafeta de pizza protegido por carros dos serviços secretos. E nunca terão pedido a agentes dos serviços secretos para entregarem croissants frescos ao casal de amantes na manhã seguinte. Já se tinha ouvido falar que os serviços secretos estão em decadência, mas este serviço foi como cravar um punhal na dignidade dos serviços secretos.
Correndo o risco das generalizações (que são amiúde fraudulentas) e da incoerência de postfaciar a teoria Joana Amaral Dias, eis a minha conclusão: diz-me como são as tuas fantasias carnais, dir-te-ei o jeito que tens para a política.

24.1.14

Pega de cernelha

In http://www.youtube.com/watch?v=h1vYbHHhqYE
Tropeçamos em gente a esbracejar com uma coragem que não é sua genética. São os que não sabem olhar o bicho nos olhos, ladeando-o, deslealmente desferindo golpes pelas costas. E depois aparecem, compungidos, lamentando a trama de que se dizem vítimas. Às lamúrias serve a muleta dos libelos entregues aos que mandam. Saldam-se pela pose triunfal, como se fossem autores de proezas ímpares.
Não afirmam: insinuam. Não contestam: preferem que o outro vire as costas para desfiar os ultrajes. Não olham nos olhos: desviam o olhar, inquietos, talvez para não decaírem na fraqueza que são. Não foram adestrados na honestidade: manipulam com a destreza dos impostores. Fazem lembrar a escola, pouco depois dos cueiros, como havia destaque para uns trapaceiros que se esmeravam na perfídia e perturbavam o sossego com os queixumes repetidos ao professor ou ao diretor, participando dos colegas que haviam asneirado. Faziam-no sem que fossem instados a identificar os rebeldes; a iniciativa era sua, julgando que caíam nas boas graças dos tutores que os ouvissem.
Porventura tiveram vencimento ao longo do tempo. Não tropeçaram em probos que repudiariam o mau vício delator. Talvez tenham começado a aprender desde tenra idade, pelos maus exemplos de quem acolhia a delação militante sem reprovação de conduta, que o poder é uma arca de corrupção. Aprenderam que os fins são a caução dos meios, mesmo que depois sejam acantonados num lugar mal frequentado por quem foi educado na decência. São promessas na pestífera peleja que açambarca a vida dos partidos onde se congeminam as táticas do poder (e do contrapoder). Má moeda que expulsa a boa, esta incapaz de suportar más companhias.
É quando personagens destas metem a mão no poder (qualquer poder que seja) que mais o poder atemoriza. Deixa de haver critério. Só conta o séquito que não se cansa das genuflexões que puxam lustro aos diários elogios, necessários para apaziguar o tamanho das personagens que não cabem em seus lustrosos espelhos. No fim do turbilhão, sobra uma colmeia de mastins. Falazes na coragem e atreitos aos ardis maniqueístas.

23.1.14

Finding the sea

In http://www.youtube.com/watch?v=GiIHele1rTE
E então veio o mar. Para levar as páginas já amarelecidas.
A janela espreita a maresia que se insinua nos seus poros. A janela espevita os olhos que nela espreitam, abraçando as ondas que do mar vêm beijar a areia. E podem os olhos virar as costas ao mar que ele continua durável, na maresia que se incrusta nos sentidos, nas ondas que se desfazem no areal molhado.
Veio das montanhas, onde há precipícios abruptos e o vento morde com a fúria de um chacal, onde as brandas escondem feitiços que amarelecem as páginas de um livro gasto, onde o silêncio é imperador e transforma o tempo numa medida perene. As montanhas, com seu chão pedregoso e o alcantilado que amedronta, foram um exílio. Solidão como cura. Como se as pedras pontiagudas, restolho da severidade da paisagem, fossem pastoreadas pela vigilância de uns olhos de insónia, cura dos estilhaços que alguma vez se abateram locupletando o andamento do tempo. Às tantas, o exílio teve seu epílogo. Os cantos das sereias banhando-se no longínquo mar ecoavam nas entranhas da serrania. Eram um apelo irrecusável. E nem a tanta distância aplacava a maresia que subia os montes e descia aos vales, começando novo alpinismo até se despenhar no profundo vale onde arrimava nas tumultuosas águas de um rio juvenil, e assim sucessivamente. Até à maresia sussurrar ao solitário pastor exilado nas brandas, convocando o seu regresso.
Era a hora de emalar os pertences e retornar à pertença do mar. Não precisava de mapas, nem de mnemónicas interiores que silvassem constantemente o caminho acertado, de cada vez que um demónio prometesse engodos ao chegar a uma encruzilhada. Era o chamamento do mar. Por mais longe que estivesse, mesmo que o exílio fosse na maior equidistância do mar de que há conhecimento, faria como as andorinhas que voam e voam sem se perderem na sua transumância. Não eram precisas bússolas, nem artimanhas outras que curassem de indicar a localização. O mar era íman sem freio.
O mar, que o trouxe de volta ao quadro onde a moldura era o sortilégio das ondas que se desfaziam no areal molhado. E a maresia, poema eterno.

22.1.14

Ninguém se leva a sério

In http://www.meuconforto.com/img/fotos/microfones%20antigos%208.jpg
A humanidade é um covil onde andamos atrás das trapaças dos outros, escondendo as nossas próprias.
Que grande inquietação: gente embebida em azáfama, querendo mostrar como outros, que se entronizam sozinhos num púlpito a eles chamado, fogem da hombridade. É como os alcoviteiros que escarafuncham pacientemente alheias existências no mais relevante sinal de que vivem atormentados dentro das suas. Há agentes treinados no diligente juízo dos outros, fazendo as vezes de magistrados ungidos com um manto de moralidade que, mandam dizer, os deixa à margem de qualquer suspeita. Não precisam, nem admitem, escrutínio. Pois eles são os escrutinadores. Supremos.
Quem se incomoda com o dedo em riste que sobre si se abate, protesta: a ninguém deviam ser admitidos papeis sobranceiros. Pois não é essa a lição dos caudilhos da igualdade? Uns assobiam para o lado, não se importunam com os achaques que os alcoviteiros de alheias têmperas atiram para cima deles. Outros, condoendo-se com a infâmia vinda de algures, esquadrinham a origem do ultraje e viram a mesa do avesso, perseguindo os perseguidores. É uma caça sem peias, onde todos são predadores e vítimas, um jogo de que se não sabe quem leva vencimento. Os curadores da impecabilidade nem dormem só de imaginarem que uns tresloucados, mal amanhados com os costumes que deviam ser cimento da pertença coletiva, insistem na transgressão.
Os que com nada se inquietam perseguem o seu ladário, indiferentes ao resto. Mas há gente que se ofende com as comendas dos predestinados e seus julgamentos sumários. São atirados para um jogo que depressa se faz selva, sem regras, por ninguém haver disposto a respeitá-las. Um covil onde depressa o predador amanhece vítima, se for madraço na sobranceria que o encavalita numa imaginada superioridade. Os que se entregam no afã deste jogo aviltante não têm tempo para perceber que ninguém se devia levar a sério. Sermos burlões uns dos outros servia para aplacar as intenções salvíficas e as orquestrações destinadas a crucificar quem aparecer pela frente com malévolas intenções.
Se ao menos ninguém se levasse a sério, ninguém se importaria com vidas fora das suas.

21.1.14

Caramelos de Badajoz

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjjjFAtKr6QYUY510uWlEsG8Ju5sQ3-qfece3KR5ZDftFpqiwYmF4_6GRnH5Z1MyBDRX99XMR7UPW1EyPiPAzqglS3UZO5fl9qczC4XB8eoV46oPIH3fvmh6rpuq2FOnZIwLtPs/s1600/caramelos2.jpg
Umas raridades. Como as raridades, impreçáveis. Olhos esbugalhados de cada vez que se aprontam ao espelho. É que compraram, propositadamente, um espelho maior que o seu tamanho. O espelho amplia os retratos que são quando se oferecem em autocontemplação. Sofrem de uma rara estirpe de gigantismo. Formigas em corpo de girafa – mercê da ampliação enlouquecedora que o espelho admite. Gostam de esfregar nas fuças dos outros, pobres mortais no restolho da mediania, façanhas que ninguém pode ter a ousadia de julgar lúgubres. São padecimentos irreconhecíveis, a julgar pelo autismo que é sua piscina exótica. Uma espécie de onanismo em que são onanistas de si mesmos.
Mandá-los apanhar bonés – é que deve ser. Ajuramentar a fancaria que se encontra perdida entre os vestígios das inúteis coisas. Se houvesse um caricaturista para os retratar, sairia uma cabeça disforme, só cabeça sem corpo restante, uma cabeça que escondia, na nunca, um caruncho que os olhos não conseguiam discernir. Atrás vem a manada de discípulos obedientes, com tirocínio na genuflexão, orgulhosos por serem pajens. Houvesse complacência, ou porventura quem não transitasse por uma ruela, estreita e escura (e por isso pouco frequentada) de rigor, e a aura seria incontestável. Seriam comendadores precoces, autoridades indiscutíveis, escol com prebendas a condizer, senadores do conhecimento a destilar sapiência em cada palavra dita. Ditariam leis caucionadas pelo seu, muito, conhecimento. Aos demais, resignados à mortal condição, seria imperativo deificá-los. Só que as cores do mundo não rimam com os autorretratos ungidos pelo gigantismo que fazem de si mesmos.
Que fossem deuses de pés de barro; não interessa, desde que sejam deuses. Haveria gente que deles faria matéria-prima para a pilhéria; não interessa, desde que andem nas bocas do mundo. Os do séquito por oportunismo sê-lo-iam, só à espera de meter o dente na primeira esguelha de sinecura; não interessa, desde que haja passadeira vermelha desdobrada à sua passagem. Uma imensa maioria, quase sempre silenciosa, mandá-los-ia à compra de caramelos em Badajoz (talvez nem essa sua serventia); não interessa, desde que fossem caramelos.
Mas, ó contrariedade malfeitora: os caramelos, nem os de Badajoz, são raridades.

20.1.14

Pelos olhos escuros da eternidade

In http://www.ricbit.com/uploaded_images/infinito-736592.jpg
Que se ponham as almas de molho. Que estejam preparadas para o ciclone dos sentidos. Não é de um tempestade coloquial que se trata. Não são inconfessáveis as juras que se interiorizam. Em podendo as afetações ser banidas, de onde sopram as hesitações que parecem suicídio assistido? Os olhos ensimesmados rejeitam os festivos estados de alma que a generosidade cambia em troca de nada. O comércio das almas não se compadece com a troca de mercancias com preço marcado. Há só um dar, sem o receber como imperativo sinalagma.
Por todo o lado abundam profetas do infortúnio, que mais parecem profetas da insídia (a começar pela deles próprios). Sinalizam a obscuridade que totaliza o tempo, como se não houvesse tempo soalheiro, ou a luz diurna desmaiada pela teimosia das nuvens que se acastelam como um biombo do céu que se perde na resplandecência do seu avesso. Os seus rostos são um funeral. Só conhecem palavras malsãs, sombras estéreis, o amanho das maleitas, a intriga. Prefaciam o fim dos mundos, que não se demora. Só não sabem se serão habitantes da mortalidade quando o fim dos mundos achar o seu dia, mas pouca serventia tem o oráculo, caso lhes fosse dado a conhecer um que fosse revelador. Prefaciam o fim dos mundos enquanto pressagiam a decadência em estado febril, a incivilidade (dizem, enfáticos), entronizando-se tutores dos bons valores.
Os outros, os que recusam o miserável opróbrio do futuro, encantam-se com a perenidade do presente. Enfeitam-se com coroas de ouro, vestes sumptuosas, ou a nudez dos corpos trémulos; ensaiam estrofes que ao menos são obras primas no seu convencimento; deixam as lágrimas a marejar nos olhos quando os sentidos ensaiam emoções irrefreáveis; servem-se de guarda-chuvas aveludados à prova da chuva ácida que desarranja os campos; as mãos que vêm das algibeiras trazem as pétalas perfumadas com os gestos que são um encantamento. E dizem, sem relutância, que a eternidade não é uma quimera.
A eternidade é o latim dos puros que desafiam os olhares entristecidos sobre o que há em redor. Só os olhos escuros conseguem decantar a eternidade.

17.1.14

Assim falavam os insubmissos

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg8rhlVanXo1qOQfYQUiyT7BYzEMxusmymhpE_DwPv-GY5NLwYjl2E5u2yl9_YchbYEvGxlh8kXlosIrRfhkhcrEyRdpTBJHGu9XgaX6pj6QiPnjx8P4Z5bblirMGEu8DB78gVw/s400/ced+art4+soltando+as+amarras.png
Eram personagens da diferença, tanta que vogavam nos antípodas do pensamento. Era como se respirassem um ar diferente. Cultivando a indiferença pelos demais, cada um sentia um vórtice de atração pelos outros que figuravam no restrito escol de rejeitados. Eram rejeitados pelos que amealhavam as migalhas dos poderes fáticos. Por causa da sua insubmissão. Ai de quem ousasse congeminar umas algemas agrilhoando a sua independência. Ai de quem os algemasse a uma submissão que não incomodasse o exercício do poder. Eram incómodos. Importunavam-se com a vazia apoplexia que os aprendizes de tiranetes, sob o falaz manto da tolerância, precatavam nos anónimos. Não diziam, mas insinuavam, em insulto à inteligência de quem pensa: “somos vossos fautores, arroteando o conforto de por vós pensarmos.
Eram atirados para as margens pelos poderosos que não conseguiam ter freio neles. Depois de os tiranetes orquestrarem artes maniqueístas, eram olhados com desconfiança pelo numeroso séquito dos mandantes. Às vezes, atiravam-lhes pedras, verbais pedras. Queriam que ripostassem com violência. Às tantas, julgavam os provocadores, não aguentariam tanto apedrejamento e, impacientes, perderiam a razão com o jugo da violência. Mas eles não se descompunham. Eram catedráticos na arte da provocação. Não sucumbiam ao ardil da provocação ensaiada pelos aprendentes. Era quando ao alto de si assomava a fleuma. O pensamento elaborado cuidava do resto.
Não os incomodava serem verberados pelo espartilho da incoerência. Estavam-se nas tintas para os sargaços lodosos que lhes atiravam. Preferiam a dignidade da incoerência à cadavérica sujeição à batuta do poder. Que fossem os mandantes bater a outra porta se quisessem que fossem meros instrumentos. Como essa era a incoerência que lhes esbofeteavam em pose triunfal, apuravam a provocação como esteio do ser. O supremo deleite: o contorcionismo dos argumentos para empalidecer a forquilha dos malsãos tiranetes. Quando eles julgavam que dobravam o braço dos insubmissos, estes contradiziam a contradição anterior, arremetendo por outro lado que os mandantes não conheciam. Estavam sempre a desbravar novas avenidas.
Ó heresia”, suplicavam, atordoados, os tiranetes. Não conseguiam lidar com o pensamento aleatório e sem redis dos insubmissos. Os tutores dos poderes fáticos não intuíam como os seus poderes eram devorados pela insubmissão dos indomáveis. Que se juntavam, em secretas consagrações, depondo o vasto mar de diferenças que os desunia, para erguerem os cálices com mensal periodicidade. Festejando a decadência dos poderosos.

16.1.14

Contraindicações

In http://www.neoss.com/images/page-section-images/contraindications.jpg
(Um vinho com taninos do agrado dos cultores da moralidade – de uma moralidade qualquer, que as há tantas, tantos os gostos por onde elas transitam).
1. Açambarcas toda a riqueza. Um dia acordaste com a pele virada do avesso. Não soubeste trair a ganância que te consumia por dentro, enfartaste toda a avareza que se podia conceber, o que custou um aviltante empobrecimento a muita gente. Numa alvorada, ainda dormias abraçado à ostentação que afivelaste, a horda rebelou-se. Nada puderam fazer os soldados do teu exército privativo. A horda manietou os lenientes, liquidou os mais bravos, saltou as ameias da tua abastada fortaleza, saqueou pelo caminho o que estava à mão, descobriu o canto onde adestravas o sono. Quando deste conta, já não fazias contas aos haveres. Já não eras ser vivente.
2. Açambarcas a adrenalina toda. Em parte, porque te sentes acometido de uma excitação viciante. Em parte, porque és cultor do heroísmo e crês que os docemente endemoninhados da adrenalina figuram no panteão dos modernos heróis. Agrada-te a ideia que os outros de ti fazem: uma bravura tresloucada, mas sem que a batuta se perca dos teus dedos. Os desafios adelgaçam-se a cada nova epifania desvairada. Haveria de vir um dia: as hostilidades seriam finitas. Pegaste num automóvel sob efeito de substâncias ilegais. Os sentidos estavam embaciados, mas julgavas-te penhor de uma bravura ímpar. Afinal os sentidos atraiçoaram-te. Entraste na estrada pelo lado contrário. De frente vinha o camião do lixo. Já não ficaste para contar a contrariedade.
3. Açambarcaste o vinho que havia na adega no rés-do-chão da tua casa. Já não eras o conhecedor que descobria a combustão dos paladares escondida em cada vinho. Filiaras-te na dependência. Bebias os vinhos, dos correntes aos mais raros que na adega repousavam. Não eras exemplo médico, que os ditos propagandeiam um copo virtuoso às refeições. O teu fígado parecia o dos gansos antes da degola que os serve de matéria-prima para o foie gras. Certa noite, as pernas trémulas tropeçaram nos braços e o teu obeso corpo caiu pela escadaria abaixo. Só parou, o disforme corpo, na frontaria onde repousavam os favos vazios que outrora acamaram distintas garrafas de vinho tinto reserva. O vinho sobrante já não seria para tua perdição, que ela aterrara naquele momento.
(Remate da irmandade dos moralistas: soubessem ler o livro das instruções que vem agregado à nascença. Ao que os personagens decadentes contraporiam: “ao menos não levámos uma existência enfadonha. Houve cores a embelezar a estreiteza do que fomos, a transformar essa estreiteza numa grandeza sem par.”)

15.1.14

A chuva lá fora

In http://www.tocadacotia.com/wp-content/uploads/2012/11/10-coisas-que-voce-fazia-quando-crianca-apostar-corrida-com-gotas-de-chuva-.jpg
A insónia que se demora. Lá fora, outro aguaceiro. As gotas grossas esmagam-se contra a persiana semicerrada, tornam a chuva audível. São o presságio das lágrimas furtivas que um homem não tem vergonha em verter.
Sitiado pelas apoquentações, inerte perante a encruzilhada que promete resoluções, remói por dentro das fragilidades em que se debate. Fecha os olhos como se estivesse a chamar o sono. Como se soubesse que o sono destravasse os labéus que escurecem o horizonte que se projeta nos seus olhos. Que, estando fechados, reivindicando o sono que se dissolveu antes do tempo, distinguem a nitidez dos sobressaltos que são a catilinária que o persegue. Talvez haja apenas um erro de apreciação. Talvez ele seja fautor dos seus próprios sobressaltos. E a chuva lá fora, tão sonora na sua precipitação sobre o chão e as paredes da casa, seja as lágrimas em que se depõe quando o precipício se abeira.
Ainda de olhos fechados, continuando a teimar que o sono, se viesse, turvava os sobressaltos que vieram à tona, percorre as páginas que formalizam as apoquentações. E sê-lo-ão, como julga? A chuva lá fora, se for a metáfora das lágrimas derramadas mercê do entristecimento de si, pode ser um sinal. Mas a chuva lá fora é ocasional. Ora esbarra com fragor nas persianas, ora se silencia amplificando o silêncio da alta madrugada. Acha-se réu das diminuições que o arrastam pelo chão. Se saísse à rua, onde a chuva volta a ecoar, trataria de subir a cabeça ao céu para ser ungido pela chuva. Levantando-se do chão que o consome. A chuva cuidaria de lavar as lágrimas que não conseguisse reprimir. Pois a certa altura, chuva e lágrimas confundiam-se num todo indistinto. Depois regressava a casa, encharcado pela chuva grossa e pelas lágrimas agora enxutas.
Os sobressaltos são iníquos. Mais a mais quando levitam na espuma de um olhar embaciado. Mais a mais, quando atingem quem deles não tem culpa. As lágrimas vertidas, como se fossem representação de lágrimas feridas, formam a cicatriz. O sono ficara de véspera, à espera de ser rematado na noite que viesse a seguir. Em forma de verdejante planície banhada por um dia soalheiro.

14.1.14

Capicua da alma

In http://indeiscente.files.wordpress.com/2008/05/yin-yang.png
Deveis haver vindicado a fortaleza maior para as vossas almas. Deveis perseguido as inditosas marés que traziam a maresia assassina, derrotando-as com o implacável gládio. Virai o fácies para de onde sopra o vento, o mesmo lado onde encontrais o sol que empresta a tez soalheira ao tempo que vive. Sabeis que não há utilidade na espera de um vulto sebastiânico enquanto engolfais os rudimentos do precipício coletivo (a aura de um sebastianismo que é desesperança seminal).
Olhai o sol refrescado pelo vento invernal. Admirai os prados vicejantes, prova do inverno caldeado pela copiosa chuva. Esquecei as preces às divindades que são o sucedâneo de figuras sebastiânicas que povoam o imaginário. Das sebastiânicas figuras sem serventia. Esquadrinhai o que de mais recomendável habita em vós. Que todos somos um manancial de estimáveis atributos, mesmo aqueles que, em demanda da auto comiseração, acheis que não.
Sabereis, então, que há uma alma gémea. Ou, em o não sendo, que se abeira da gémea condição. Sabei que este lugar não se acomoda à tirania do perene ermo que vos julgais. O tirocínio é empreitada árdua – que fiqueis prevenidos. A capicua das almas carece do encaixe das duas metades. Às vezes, as arestas brutas são obstáculo que amedronta. Depois vem a vontade que dominar: ou capitulais, convencidos que as arestas não podem ser polidas; ou perseverais, pois a indomável forma do mundo, de par com a simplicidade dos desafios que parecem invencíveis, de vós farão tutores do vosso fado. Até que, no despontar de uma alvorada promissora, haveis de descobrir como as duas metades se completam. As duas metades que pareciam inversos e que, feitas capicua, se replicam uma à outra.
Amansam-se as águas. Os pássaros soltam-se dos ninhos que foram seu esconderijo. Ao sairdes à rua, vede como os mortais que convosco se cruzam sorriem na melhor simplicidade dos sorrisos lhanos. Vede com as mãos parecem aveludadas. Ou como deixam de o parecer e passam a ser assim entronizadas. Senti como palpitam em uníssono corações que eram descompassados. Reconfortai-vos no calor de uma lareira que crepita para afugentar o gélido inverno das almas.
Senti-vos. Do mais alto promontório onde imperadores dos vossos sentidos sois. Havereis de julgar que as noites são intermináveis, sem que o sono reclame seu património. Havereis de olhar as coisas como julgáveis impossível. Com as mãos entrelaçadas, sentindo do outro o latejar do sangue nas veias, sereis um só. Ou a metáfora da capicua que se encastoa.

13.1.14

Dar corda aos limões

In http://www.chucrutecomsalsicha.com/archives/2011/limones1S.jpg
A antipatia é um couraçado. A antipatia como ardil, prevenindo que os outros que se achegam depressa queiram ser intimidade.
O melhor é erguer uma muralha. O rosto veste-se de trombas. Ensaia-se uma rudeza que, ao primeiro contágio, é medido pelos outros como sintoma de antipatia. O ardil pode ter ramificações. Ao esbarrar noutros que não ajuízam o couraçado que foi lançado a águas profundas, testam-se os limites que convocam alguma boçalidade, a proclamação de palavras que soam a algo semelhante a sociopatia, rosnando se preciso for. Os tempos sombrios e a decadência geral a tal obrigam, dir-se-ia. O diagnóstico fica ainda mais carregado de nuvens pesadas. E se o ciclo não muda, alquebrando o seu irremediável passo que tem o condão de ensombrar, ao tempo que passa, os pergaminhos do grupo envolvente?
De fora ficam líricos que porfiam na bondade da espécie, ancorados na terapêutica que é a imersão no grupo. Todavia, é mais numeroso o exército dos descamisados que preferem correr de peito aberto ao frio vento que sopra na rua a ombrear com a desconfiança que alastra entre os pares. À cautela, espremem-se limões sobre o rosto, para o rosto se embeber na acidez do sumo derramado – a semente perfeita da antipatia. Um pé atrás é a medida acertada para os tempos decadentes que nos dizem ser os de agora. Mesmo que assim os não sintamos, não nos deve ser permitido destoar dos oráculos que destilam gratuita sapiência e advertem para os malefícios da sociedade.
Depois de amanhã, enquanto mais gente perder a fé na lírica forma de ser e se for alistando ao exército dos desbeneméritos, o ar ficará irrespirável. Nessa altura, só à força de máscaras de oxigénio será possível sair à rua. Ao menos ninguém os verá, aos mascarados que depressa se auto denunciam a ostentar a tristonha, misantropa face colonizada pelo perfume dos limões.

10.1.14

O futuro começou ontem

In http://www.youtube.com/watch?v=8qFIvnWy07w
(Ontem é todo o tempo que abonarmos como tal)
Dizem-nos que as coisas são intemporais. Que há um fio condutor entre as diferentes camadas do tempo. Dizem-nos: que não há cautela em afirmar as diferentes camadas do tempo quando, pelo seu fio de prumo, vêm encasteladas num uníssono. Deixamos o tempo vir a nós. Não queremos ser seus tutores, não vá o tempo assanhar-se e instruir vingança implacável.
Olhamos para a vastidão do tempo pela lente clara que decanta os desenganos. Detemo-nos em coisas prosaicas, em detalhes que não cativam a atenção dos demais, nas partículas que se obtêm da combustão das almas, dos olhares cúmplices que se fundem num só, na universalidade imensa que transluz no mar que somos nós. Também nos dizem, outros que apascentam a rotina dos costumes, que cuidemos de investir no tempo vindouro. Que devemos deixar em núpcias esquecidas o desassossego do pretérito, mesmo que o pretérito tenha sido açambarcado pelo viço que não decai no esquecimento. Não esconjuremos o que houve. Nem cuidemos de vacilar no tempo que já foi, pois o tangível é o que está prometido.
Mas não sejamos atraiçoados pelos compartimentos estanques do tempo, ou dos tempos que se julgam diferentes porque se conjugam em diferentes tempos verbais. As árvores floridas nos ramos dantes despidos, os gansos que grasnam melopeias que repõem o rumor, os pedintes que outrora foram bem-postos, as frases ilógicas que já nidificaram em lógica, os rios que entram na embocadura do mar, a coreografia das nuvens que se desfazem em chuva, a senescência que cresceu da infância: eis o somatório de atos contínuos que se desembaraçam dos estanques tempos que se julgam diferentes.
Os olhos, em uníssono, disputam o porvir. É lá que se encontram os prazeres em que queremos aportar. Mas os olhos, imersos nesta lucidez, não desvalorizam um tempo que já é de antanho, que se enraizou num tempo de que fomos fautores. O futuro vem sempre de trás.

9.1.14

Às tormentas, dobra-se o braço

In http://ipt.olhares.com/data/big/570/5709871.jpg
O mar encantador, que tudo pode matar.
Agitam-se as árvores, arqueiam-se seus ramos que fogem do epicentro. O mar molda-se num dantesco quadro. A chuva escorre como se não viesse outra vez o tempo soalheiro. As pessoas perdem o sono, vigilantes sobre os haveres, erguendo trincheiras que julgam proteger da malévola intempérie.
Ao mesmo tempo, sacerdotes das catástrofes recordam que a culpa das tempestades é dos homens – como se fosse mais importante discutir as suas origens em vez de congraçar as consequências, com falta de respeito por quem perde os haveres. Outros, menos doutrinados, lamentam a aziaga natureza. Lembram que o homem leva tempo a embelezar a orla que quase beija as mansas águas do mar quando elas se não descompõem e que, num golpe estouvado, o mar, em íntima aliança com os adversos elementos da atmosfera, rouba o que teve dedo humano. Vertem-se lágrimas por causa da devastação. Maldiz-se o mar que não quis ser sempre benquisto e se amotinou, quase fazendo crer, em coro com os profetas das catástrofes, que foi a paga pela tresloucada sede humana de meter edificações em lugares que qualquer dia podiam ser colonizados pelo mar.
Falta-lhes lucidez, aos profetas das catástrofes e aos que tecem seus prantos e querem baixar os braços. Sempre que uma tempestade muito descompôs, a têmpera humana, que é rija e perseverante, cuidou de reconstruir. No fim das contas, triunfa a sede de empreitada que faz as pessoas meter as mãos ao trabalho, lambendo as feridas que o mar avivou quando se indispôs e entrou, de reboliço, no terreno que se julgava imune à sua inspeção. Pode ser que venham de novo os agricultores das catástrofes reclamar sua razão, protestando contra o desmazelo dos perseverantes por nada aprenderem com as catástrofes havidas. Até podem adivinhar que, mais tarde ou mais cedo, o mar volta a invadir a quietude que assim se julgava, numa sanha destruidora que devolve ao mar uma covardia escondida.
O que interessa é que as tempestades não são definitivas. São uma curva traiçoeira que arrebata uma trama dramática. Descontando as vítimas que perecem na fúria de uma tempestade, estamos cá todos, os da larga maioria, para reaprender com os destroços.

8.1.14

Escolhido

In http://us.123rf.com/400wm/400/400/elnur/elnur1101/elnur110100631/8657236-many-burning-candles-with-shallow-depth-of-field.jpg
Perguntou: “para se ser herói é preciso estar morto?” Respondeu com outra pergunta: “para se ser respeitado é preciso estar morto?”
Os que ficam para contar a história aos vindouros precisam do cimento dos heróis. É mais fácil endeusar heróis que tiveram o seu passamento. Prosseguiu: “não achas que a vã glória dos que partiram é uma inominável infâmia à vida?” Respondeu com mais uma pergunta: “e a vida, aquela que é desaproveitada por tanta gente, não é a pior homenagem a si mesma?” De cada vez que uma figura ia em decesso, homenagens em catadupa. Daí, outra interrogação: “não perdemos o sentido da vida ao gastar tanto tempo com demorados tributos aos que morrem?” Mais uma pergunta em jeito de resposta: “não será porque tememos a morte e não queremos ser esquecidos, pelo menos nos momentos fúnebres logo a seguir ao passamento?”
Convergiram: procuramos um lugar para a nossa heroicidade. Não haverá ninguém que não reclame o seu pedaço de heroicidade. Nem que só irrompa à superfície, em quase unânime reconhecimento, quando já não podemos ser testemunhas presenciais do clamor e dos prantos que se montam à passagem do cortejo fúnebre. “Será mercê do uso estabelecido? Será que a não vassalagem, quando o corpo repousa em velório, é falta de respeito?” Às perguntas seguiram-se outras duas em jeito de réplica: “podemos ficar sitiados pelo marasmo das convenções? As convenções não mudam com a espuma do tempo?”
Há um caixão, ou um pequeno túmulo para depósito das cinzas, que é o mosteiro onde cada mortal repousa com direito a ser cortejado. Inutilmente cortejado. Do sítio onde se encontram, os mortais que vêm tal condição reconhecida estão num sono infinito, não podem ser testemunhas de nada. Os heróis somos nós, os que vão aos funerais: vemos, numa retrospetiva antes do tempo, o nosso próprio funeral. Passamos de boca em boca, através das gerações, o efémero endeusamento dos que partiram do lugar os vivos. Mandamos dizer que eles são heróis, esperando pela nossa vez de sermos consagrados heróis.
Houvesse quem ensinasse a efémera, inútil condição dos heróis. Fazendo lembrar a espuma inconsistente que as marés vivas depositam na orla, a tão frágil espuma que se esmigalha com a – tímida que seja – brisa. 

7.1.14

Arrumador de ideias

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhvwDlVdfUB00mgPPpUd53eTF0m-bQqCz2L7gebbWFmlTotvl0pjpC_9vA6W9EdmVUUWgNSFZAqs1o2Mx0RrBlFMc2JQ88oX6XfjSG2nVUXg6MlxmR8hymaaQ0KfPxblnk6hnMq/s1600/Fósforo.jpg
Um nevoeiro tremendo. As partículas da condensação, um biombo onde cresce o embaciamento do que vem por diante. Às vezes, sem saber se faz noite ou se o nevoeiro trata de limpar a claridade que pertence ao dia. Um labirinto interminável, sem fio à meada que se veja, troveja pelas entranhas.
É como se dominasse uma sensação idêntica a quem se encontra perdido no meio do nada, sem mapa à mão e sem ter aprendido os azimutes. Os coiotes que vociferam uivos ao longe não são de contemplações quando encontram os imberbes deitados fora na vastidão da pradaria sem vivalma. Se puderem, deitam o dente e não largam mais o corpo até que ele se transforme em carcaça. E os coiotes sentem-se cada vez mais perto, a julgar pela proximidade dos uivos. Pode ser que a lucidez impeça a desorientação. Pode ser que o sangue frio vença o torpor que ameaça tomar conta de tudo.
Por dentro, onde tudo se revolve numa ebulição telúrica, ferve um torpor que se condensa em hibernação. Que pode ser fatal. Não há tempo para o sono, que esse sono pode ser o final. As afiadas facas que adejam no céu, pairando sobre as distantes montanhas que acamam a pradaria, estão vigilantes. Congeminam a vigilância de si mesmo, sobre si mesmo, num desigual combate que caldeia os sentidos. Os suores frios que escorrem pela fronte são mau presságio. É altura de transformar as fragilidades para torcer seu fado e delas fazer antídoto: são as fragilidades que compõem o ânimo que vem a seguir. O nevoeiro que tudo embacia começa a desfalecer. Arrumam-se as ideias a partir da sua desordem. Rombos na cortina de nevoeiro, com o biombo a desmaiar em sua fina porcelana, são o sinal de uma nova temperança. Não foram os mastins a levar vencimento. As afiadas facas ficaram atadas numa contumácia; afinal eram vagas ilusões que adulteravam a nitidez do olhar.
Arrumadas as ideias, desde o mais alto da humilde admissão das fragilidades, sobrava um tempo inteiro por diante.

6.1.14

Hoje: dez anos de "O felino".

Desiguais

In http://ressabiator.files.wordpress.com/2012/01/desigual1.png
(Um texto eventualmente chocante)
Pelas arcadas que não colhem as simpatias das maiorias, dos bens pensantes, dos que se auto encomendam a sotaina da moralidade que se descarrega, iracunda, sobre os outros, dos que se arregimentam exclusivos próceres dos desvalidos. Por essas arcadas, entre a penumbra do discurso habitual, um pleito pela desigualdade.
Porque desiguais são os dias que não crescem lineares nem têm apalavradas iguais horas de luz e de noite. Desiguais são as terras habitadas por gente, umas antolhadas pelo frio invernal enquanto outras açambarcam as virtudes do tempo estival, umas espraiadas em intermináveis planícies, outras acanhadas entre alcantiladas montanhas. Desiguais são os gostos, as maneiras de ver e de experimentar, os sentimentos e, acima de tudo, as vontades que se jogam ao encontro de aleatórias variáveis. Desiguais são os atapetados chãos onde, fulgurantes ou decadentes, desfila a sociedade das nações. Desiguais são as almofadas onde se deitam os mortais, muitos à noitinha, alguns só quando a alvorada depõe a longa noite.
Porque desiguais são os afetos, de quem os oferece e de quem os abraça, como desiguais são as disposições para dar e receber, os egoísmos e as generosidades, espontâneos ou malsãos. Desiguais são virtudes que seduzem e os coriscos que embaciam (sempre) um pedaço de uma personalidade. Desiguais são os atributos e as capacidades, as propensões para as artes e as letras ou para as ciências exatas. Desiguais são as massas sanguíneas que nos percorrem, como desigual é o ADN que individualiza cada indivíduo. Desiguais, por mais chocante que soe, são os berços que são regaço dos nascituros. Como desiguais são as formas de morrer, e mais desiguais são os ora breves, ora longos, interstícios entre a vinda ao mundo e o decesso.
Desiguais somos todos, embebidos na tolerância da nossa individualidade. Os que afiançam a homogénea espessura de todos os mortais por inerência da sua pertença à espécie humana, dizendo-se guardiões do sagrado valor da igualdade, rumam pelo pedregoso populismo do irrealizável. São fautores do cimentar irremediável que, ao fazer de todos nós altares de uma igualdade sonhada, mata à nascença a maior qualidade da espécie humana: a desigualdade que somos, tutora da diversidade que faz da espécie de que se fala uma admirável espécie no reino animal.

3.1.14

Palavras malditas

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjhV4uphz2TuQTTJ5hrb7qxM_n_TjuWWxgG52gZx8olQqJIBzIQ8bn0wsfZGTWlQiS-xwKuieaJ7eFS6tIjTRHpOnIaKfGT3fLC6A5DQon41G8Kb3rQ6byPqz4jl4u0zAAs9v4lMQ/s200/no_tongues.jpg
Em melhor dizendo: palavras que, por terem sido ditas por alguém que é persona non grata, ficam condenadas ao desterro, sobre elas recai a vergonha de terem sido ditas por quem arrasta consigo o opróbrio de o ser.
Vem isto a propósito de ter lido e ouvido pessoas a pedirem desculpa por usarem a palavra “narrativa”. A dita palavra ficou célebre no espaço público depois de um antigo primeiro-ministro, que fez uma sabática da vida pública enquanto tirocinava estudos pós-graduados em ciência política em Paris, a ter repetido numa entrevista na televisão. Eis o efeito devastador: as pessoas começam a falar; e como no raciocínio se engatilha a palavra “narrativa”, antes de a usarem metem um parêntesis na frase para avisarem a audiência que vão usar uma palavra maldita, como se estivessem a pedir desculpa antecipada por enlamearem a boca com tal palavra.
É interessante o efeito repulsivo que uma personagem pode causar. No discurso científico e na comunicação académica, sobretudo nas ciências sociais, a palavra “narrativa” está vulgarizada. É uma importação do contexto anglo-saxónico, onde “narrativa” tem um significado diferente do seu sentido literal quando os leigos a utilizam em língua portuguesa. Por abastardamento – ou, dir-se-ia, por contaminação ditada pela decadência de quem a usou – agora é uma palavra proscrita. E só não está totalmente proscrita porque as pessoas que a articulam no raciocínio, por pudor (como quem diz: “não me confundam com a personagem que popularizou a dita palavra”), pedem desculpa por atirarem “narrativa” para o meio da frase.
O episódio faz lembrar uma patusca personagem que aterrou entre académicos, vinda do meio empresarial. Era uma daquelas reuniões que promove a convivência entre académicos e empresários, para contrariar a imagem feita em que universidades e empresas vivem de costas voltadas. O patusco gestor, num discurso muito educativo em que pretendeu educar os ensinadores, ensinou-nos uma palavra que, julgava ele, nós desconhecíamos: “paradigma”. A folclórica personagem mal sabia que “paradigma” é um lugar-comum nas ciências sociais.
A partir daí, passamos a fugir de “paradigma” como o diabo foge da cruz. O poder do preconceito é danado.

2.1.14

Cavalo alado

In http://artnolapis.files.wordpress.com/2008/11/pegasus.jpg
O cavalo sem freios irrompia pelos campos, sem norte nem sul que lhe aprouvesse. Até que chegou ao areal, onde o mar fecundo cuidava de molhar as areias tresmalhadas. Mercê do estado enfurecido do mar, os pássaros tinham encontrado poiso no largo areal.
O cavalo, tão furioso como as ondas encapeladas do mar, troteou pela areia. Escolhera o lado onde estava o bando de aves. Assustadas pelo trote acelerado, as aves levantaram voo. O cavalo fez-se aos ares em companhia das aves. Estaria cansado dos cascos percutirem com força o chão por onde passara em sua fuga. Muniu-se das asas escondidas e foi atrás do bando de aves, que partira em sonora algazarra, gritando o medo de que o cavalo andasse em sua demanda. Mas o cavalo agora alado não tinha maus propósitos. Ao despedir-se do chão, enquanto imitava o voo das aves assustadas, não exibia a ira de quem quer ser algoz de alguém. O cavalo alara-se para coreografar, em comandita com os pássaros desapossados de seu sossego, uma dança pelos céus em redor. Esvoaçou sobre o mar, ele que sempre quisera ver como eram as costas das ondas. Ensaiou rasantes sobre a espuma que sobrava das ondas, quando se arqueavam na partitura medonha que não deixava nenhum pescador ter ousadia de meter embarcação ao mar.
Os pássaros, enfim, acolheram, o cavalo alado. Entraram na coreografia espontânea com o cavalo, ensinando-lhe uns passos que deviam ser aprendidos no ballet dos ares. O cavalo já não era uma besta irada. Trauteava as melodias sussurradas pelos pássaros enquanto apreciava a paisagem que via do ar que era seu império. Sabia que os sonhos pertenciam às ilusões. Sabia, enquanto se adestrava nos contrafortes dos sonhos, quando ainda pertencia ao remanso da estrebaria, que os sonhos não eram matéria a que pudesse meter mão.
Naquela tarde, tudo passou a ser diferente. Lembrava-se de um sonho sobre cavalos que faziam os esbeltos movimentos dos pássaros quando se entregam à coreografia dos voos. Ele era a personificação do seu próprio sonho, ao saber-se um alado cavalo.

1.1.14

Glória datada

In http://images04.olx.pt/ui/28/67/83/Caneta-de-tinta-permanente-Montblanc-original-com_446546483_9.jpg
Era uma vez. Passava o tempo a fazer de conta que era uma vez. A mergulhar no tempo datado, resgatando desse tempo (variável, consoante o tempo na sua sucessão) os símbolos datados. Pedia emprestado ao tempo de antanho a memorabilia que enfeitava o seu, sob protesto, tempo. Era como se tivesse nascido a destempo. Ou como se estivesse moído pelos suores do tempo que era seu testemunha. Embolsava as alvíssaras do tempo ido e prolongava a sua existência para o tempo que era fora do tempo, o tempo seu que era um tempo a destempo.
Convocava a glória dos instantes pretéritos que serviam para evocação de tamanha glória. O bigode ancestral, curvado nas extremidades, cuidado com a diligência que os aristocratas novecentistas punham no adereço facial. O chapéu, fosse inverno ou andasse o tempo em visitação estival, saía sempre à rua. Na quinta da família – o derradeiro expoente salvo da decadência que assolou o património brasonado – montava num dos cavalos mal a alvorada irrompia, o trote era vingança da má frequência do tempo presente. Frequentava arquivos de bibliotecas. Era ávido leitor de numismática, literatura tauromáquica, especialista autodidata em genealogia. Fizera estudos em história. No acanhamento de um escritório de negócios, declinava-se perante a monotonia de um emprego que precatava as despesas correntes, apesar da contrariedade de um emprego pouco mais do que manga de alpaca que o punha em desassossego. Sentiu-se ultrajado quando o governo matou o feriado da restauração. Seria encomenda dos espanhóis, os eternos inimigos, já que havia de cumprir o adágio que o povo eternizou (de lá, nem bons os ventos nem aconselháveis os casamentos).
Ao fim do dia e nas noites de fim de semana, ajuntava-se a outros que pensavam na mesma bitola – com as ideias diferentes lidava mal e tivera umas pelejas bravas com quem tivera o topete de discordar, fosse em tertúlias a que ia em demanda de briga, fosse em jantares de amigos onde apareciam uns paraquedistas a pensar o disparate. Havia sempre um momento reservado das senhoras. Elas iam arrumar a cozinha e eles puxavam lustro aos pequenos vícios burgueses (ó aleivosia, que os burgueses vícios tinham já contaminado a aristocrática pose!). Subia à boca de cena o escarro marialva. Era quando falavam delas com o desdém próprio do convencimento da superioridade máscula. Riam-se boçalmente da sua própria boçalidade.
A última descoberta viera afivelada pelos seus incomensuráveis conhecimentos históricos. Atirara-se outra vez ao governo (mas ai de quem lhe lembrasse que as esquerdas todas, desde as moderadas às radicais, também tinham esse entretenimento, que ele virava as tripas do avesso). De caminho, atiçou os mastins à Europa vilã. E lembrou os demais que começava hoje o ano em que fazia cem anos que começara a primeira guerra mundial. Sem dar conta que tropeçava na antítese da glória, da datada glória, que preenchia a sua paisagem temporal.