In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEimWuG1f4oQE2xXUb9HdIkmEOCqx0STxpmWr7_EFS9GIpdImzpdJDvS0NmAUqVdJU6diQEeZXOn0jaiWq3Mqefd4ZtaCp2w-Q0Q3PshZRCwfT-FPPemZ199xmMBz1eBsJTTTlst/s1600/storyteller.png
A figura galã era o princípio de tudo. A
extroversão arroteava o demais. Faltava
um ingrediente: não tinha remorsos pela mentira com que convencia os outros.
Era um íntimo desejo que não conseguia reprimir, o fazer-se passar por quem não
era, incarnando personagens que eram ficção de si mesmas. Quando sentia as
personagens esgotadas, depois de narrar, com uma seriedade impassível, todas as
histórias que desaguavam no imaginário estroina, batia em retirada.
O nomadismo irrecusável era o fermento que
tornava as entranhas em ebulição, como se sentisse o sangue a ferver de cada
vez que sentia que tinha sido de mais o tempo no mesmo lugar. Partia, então.
Quando chegava ao lugar que já não era ermo, era outra personagem. Eram outras
as histórias para pespegar aos incautos. A certa altura, já não se contentava
com o logro dos ingénuos, que ele sabia distinguir ao longe. Observador nato, a
experiência de vida e os muitos lugares demandados sancionavam uma lente perita
sobre os olhares, medindo o calibre das personalidades com o rigor de um
termómetro. A certa altura, já só se chegava aos que se julgavam de espírito rijo.
Àqueles que se consideravam incorruptíveis. Pois o logro em que os apanhava,
tinha-o como uma corrupção dos sentidos.
Já fora tanta coisa. Engenheiro de barragens.
Violinista de orquestra sinfónica. Amestrador de focas. Tradutor de indiano.
Curador de desvalidos, através das missões caridosas à volta do mundo. Cabeleireiro.
Ativista de direitos humanos. Escansão. Escritor de literatura policial. Espião
(sem nunca revelar, nas histórias contadas, que o era). Jogador de póquer
profissional. Ator de filmes de quinta categoria, rodados em países do leste da
Europa. Galanteador nas horas livres. Negociador de joias (mais tarde, de
petróleo). Conselheiro político de governos africanos. Viajante, apenas
viajante (quando decaía na improvável opacidade da imaginação).
Nunca admitia a mentira. Os ardis eram
façanhas interiores. Uma prova de que
rebatia os remorsos. A páginas tantas, nem ele percebia o que era. Já
era vítima da esquizofrenia em que se acorrentara. A mentira, assim sendo, não
era mentira. Era a ilusão em que se consumia. Havia uma interrogação que nunca
admitiu que invadisse a consciência: de quem fugia para ser tantas personagens
diferentes?
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