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Era uma vez. Passava o tempo a fazer de
conta que era uma vez. A mergulhar no tempo datado, resgatando desse tempo
(variável, consoante o tempo na sua sucessão) os símbolos datados. Pedia
emprestado ao tempo de antanho a memorabilia que enfeitava o seu, sob protesto,
tempo. Era como se tivesse nascido a destempo. Ou como se estivesse moído pelos
suores do tempo que era seu testemunha. Embolsava as alvíssaras do tempo ido e
prolongava a sua existência para o tempo que era fora do tempo, o tempo seu que
era um tempo a destempo.
Convocava a glória dos instantes
pretéritos que serviam para evocação de tamanha glória. O bigode ancestral,
curvado nas extremidades, cuidado com a diligência que os aristocratas
novecentistas punham no adereço facial. O chapéu, fosse inverno ou andasse o
tempo em visitação estival, saía sempre à rua. Na quinta da família – o
derradeiro expoente salvo da decadência que assolou o património brasonado –
montava num dos cavalos mal a alvorada irrompia, o trote era vingança da má
frequência do tempo presente. Frequentava arquivos de bibliotecas. Era ávido
leitor de numismática, literatura tauromáquica, especialista autodidata em genealogia.
Fizera estudos em história. No acanhamento de um escritório de negócios,
declinava-se perante a monotonia de um emprego que precatava as despesas
correntes, apesar da contrariedade de um emprego pouco mais do que manga de
alpaca que o punha em desassossego. Sentiu-se ultrajado quando o governo matou
o feriado da restauração. Seria encomenda dos espanhóis, os eternos inimigos,
já que havia de cumprir o adágio que o povo eternizou (de lá, nem bons os
ventos nem aconselháveis os casamentos).
Ao fim do dia e nas noites de fim de
semana, ajuntava-se a outros que pensavam na mesma bitola – com as ideias
diferentes lidava mal e tivera umas pelejas bravas com quem tivera o topete de
discordar, fosse em tertúlias a que ia em demanda de briga, fosse em jantares
de amigos onde apareciam uns paraquedistas a pensar o disparate. Havia sempre
um momento reservado das senhoras. Elas iam arrumar a cozinha e eles puxavam
lustro aos pequenos vícios burgueses (ó aleivosia, que os burgueses vícios
tinham já contaminado a aristocrática pose!). Subia à boca de cena o escarro
marialva. Era quando falavam delas com o desdém próprio do convencimento da
superioridade máscula. Riam-se boçalmente da sua própria boçalidade.
A última descoberta viera afivelada
pelos seus incomensuráveis conhecimentos históricos. Atirara-se outra vez ao
governo (mas ai de quem lhe lembrasse que as esquerdas todas, desde as moderadas
às radicais, também tinham esse entretenimento, que ele virava as tripas do
avesso). De caminho, atiçou os mastins à Europa vilã. E lembrou os demais que
começava hoje o ano em que fazia cem anos que começara a primeira guerra
mundial. Sem dar conta que tropeçava na antítese da glória, da datada glória,
que preenchia a sua paisagem temporal.
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