29.1.14

O menino dos olhos baços

In http://amorimarcos.files.wordpress.com/2011/07/2334518.jpg
O menino crescia nos sonhos. Por exemplo: metia as mãos na areia do deserto, a única paisagem que alguma vez os olhos tinham visitado, e tirava-as molhadas. Fechava os olhos e conseguia sentir as mãos dentro de água, da água que não existia em milhas à volta (a não ser no oásis de onde os mercadores a traziam à aldeia). Fechava os olhos. E via-se a mexer nas águas vagarosas que desciam o caudal de um ribeiro guardado por fetos e árvores. Às vezes, quando os sonhos cavalgavam no dorso de um alado cavalo, via as mãos mergulhadas na água do mar que rastejava até beijar a areia que era sua orla.
O menino fechava muitas vezes os olhos. Sonhava – e era o entretenimento preferido. A imaginação tomava conta do pensamento e ele levantava voo da miséria da aldeia sequestrada pela aridez do deserto. Viajava pelos lugares improváveis. Desembaraçava-se das peias de que não era culpado, das peias que o sitiavam. Quando os olhos rompiam o usufruto dos sonhos, cuidava de retratar os sonhos em desenhos pueris. Os adultos não entendiam os desenhos: os mais boçais reservavam palavras cruas, desdenhavam dos desenhos, que eram “gatafunhos”, tempo perdido que o menino não usava na ajuda ao tratamento das reses e das utilidades da casa.
O menino fugia para dentro de si. Dos outros meninos também, dos que ostentavam a tristeza maior que era a infância locupletada pela pobreza e pelo infortúnio de terem nascido em terra amaldiçoada. Mas o menino não capitulava à melancolia a que os adultos diziam que estava destinado. Enxugava os olhos marejados a cada ralhete e ensimesmava-se numa torre de Babel que era só sua, impenetrável aos outros porque dela os outros não tomaram conhecimento. O menino enxugava os olhos à medida que levitava nos sonhos vorazes. Os olhos ou eram um rosário de lágrimas, ou baços no trautear do quotidiano a que estava fadado se da aldeia não se evadisse. O sonho da evasão secava as lágrimas.
Nos sonhos imarcescíveis, onde era Aladino que ungia bondade e derrotava a miséria dos infantes, uma resplandecência singular emprestava-se aos olhos. Nos sonhos que não eram proibidos, o menino era maestro do seu devir. Lá, onde os olhos não podiam ser baços.

Sem comentários: