31.8.16

A vaca (que queria ser) sagrada

Brian Eno & David Byrne, “Strange Overtones”, in https://www.youtube.com/watch?v=6DQyusKTAh4
Queria, que queria, ficar imortalizado nos livros que fabricam a moldura da história. Não se contentava com a modesta presença no tempo que devia arrebatar todo o capital da atenção. Não enjeitava a possibilidade de uma rua ficar com o seu nome – era reconfortante justapor a possibilidade ao frémito da existência atual, como se a perenização do seu nome fosse o salvo conduto para aguentar as terríveis dores do tempo por que navegava. Dizia:
- Como gostava que se lembrassem de mim depois de deixar de contemplar as pessoas e as coisas do mundo.
Contrapus:
- Como é possível isso tomar tanto do teu tempo? Como podes deixar que se transforme um projeto de vida?
E antes que prosseguissem as interrogações, disparou com ferocidade:
- Julgo que já reuni méritos bastantes para a posteridade ficar com a minha marca eterna.
Não compreendendo o propósito, devolvi em forma de pergunta:
- Mas se nessa altura já estás morto, nem chegas a tomar sabor ao pedestal em que te entronizarem.
Acenou com a cabeça, em ar de reprovação, parecendo desinteressar-se da dialética:
- Estamos em planos diferentes. Tu não crês na vida para além da morte do corpo. Eu acredito que pairamos sobre as cinzas que a morte destina ao corpo. Acredito que podemos, numa dimensão exterior, ser testemunhas dos acontecimentos terrenos. Ser reconhecido depois da morte não é uma inutilidade. Não é uma futilidade.
Sem querer dar seguimento à polémica metafísica sem, contudo, deitar água na fervura, prossegui com o raciocínio:
- Não é por aí que vou. Não se trata de admitir que prolongamos a existência depois do funeral. Vem antes de tudo isso. Não atribuo grande préstimo ao reconhecimento público. Aliás, não atribuo nenhum préstimo, para o formular com o devido rigor. Fujo dos néones, que são uma fustigação. Em vida, ou depois dela. Se bem que, admito, depois de lançarem as minhas cinzas ao mar, é indiferente o que vierem dizer ou pensar nos despojos da minha existência.
Atónito com estas palavras, pois elas transgrediam com a sua estrutural forma de ser, advertiu:
- Ainda te hei de ver a engolir essas palavras.
O que me deixou sossegado, presumindo que ele concebia a sua morte antes da minha, e que eu, aprisionado na descrença geral, não teria oportunidade de observar o que se viesse a passar depois dos despojos serem lançados ao mar.

30.8.16

Antes pelo contrário

Moderat, “Bad Kingdom”, in https://www.youtube.com/watch?v=3NPxqXMZq7o
Tens de concordar comigo neste assunto de que te vou falar.” Para começo de conversa. Antes mesmo de saber qual o assunto sobre o qual teria eu de concordar e, menos ainda, sobre o raciocínio que conduziria a uma certa conclusão. Com a qual teria de concordar à partida, quase como se fosse pedido para assinar às cegas um contrato cujo conteúdo seria depois lavrado por outrem.
Para começo de conversa, é um mau começo. Desconheço se há ingénuos que assinam contratos em branco. Desconheço se há gente que precisa de garantir, antes do tempo, que outros concordem com as suas prescrições do mundo e se isso não sela uma falta de autoconfiança ou, em possibilidade alternativa, um trejeito maniqueísta. Sondar os imperscrutáveis meandros da personalidade alheia é mister de peritos na poda, o que não é, manifestamente, o meu caso. Sei que, para começo de conversa, é uma imprevidente e mal-amanhada tática. Talvez por causa do mau feitio congénito, quando se me oferece semelhante começo de conversa sei à partida como vai ser o seu fim. Nem quero saber do assunto que aí vem, nem sequer do fio condutor que há de conduzir a uma certa conclusão. Apenas sei que vou discordar do que quer que seja que ainda me vai ser anunciado.
A menos que se trate de um interlocutor adestrado na arte da manipulação, de alguém que saiba não estar seguro dos argumentos e que, por esse motivo, precisa de caução exterior, começar uma conversa com a alocução “tens de me dar razão” sobre uma incerteza não é sensato. Se do outro lado estiver um interlocutor avisado, terá de ouvir o que houver préstimo para discorrer sobre o assunto e, só então, discernir se o pedido inicial pode ser atendido ou se merece ficar deserto. As conversas, quando são destinadas (por quem as começa) a receber uma caução argumentativa, não podem começar pelo seu fim; seguem o seu curso, com a filtragem dos argumentos, deixando ao interlocutor a liberdade de conferir, ou não, a razão que o outro requisita.
Quando o interlocutor medra num mau feitio incorrigível, este começo de conversa é a garantia de que, no final dela, a resposta à inquisição inicial será “antes pelo contrário”.

29.8.16

Eu vi uma miragem

Dead Can Dance, “All in Good Time”, in https://www.youtube.com/watch?v=Mt5HRjPWuPY
Calçado em duas galochas de cortiça que me faziam levitar sobre as águas do mar, percorria o chão molhando entre os dois cais separados pela distância de ferro. Vi vacas a pastar em campos de algas. Um comboio barato ecoava ao longe; devia ser o vento dominante a segredar o uivo do comboio, pois a distância até ao horizonte não deixava à mostra a composição que, pelo troar das carruagens em cima dos trilhos cadenciados, devia seguir à velocidade de um comboio de alta velocidade.
Desviei-me do caminho para beber água, que o caminho mapeado não tinha água potável. Parei num apeadeiro onde estavam três velhos cowboys montando cavalos viçosos. Ao balcão do estabelecimento, uma rapariga nova e inexperiente processava os pedidos com a lentidão que quadrava com a inexperiência. No cimo do telhado, hasteada uma bandeira com motivos piratas. O mar era domínio público, não havia nação que lhe conseguisse meter a mão. Mandavam os piratas que apascentavam os mares.
Os piratas não eram malévolos. Não tinham propósitos fraudulentos, por assim dizer. Os piratas contemporâneos jogavam-se aos mares, embarcados em suas tecnologicamente avançadas barcaças, para fazerem como outrora era função de justiceiros como Robin dos Bosques. Os petroleiros e os grandes navios da marinha mercante, porta-estandartes do maléfico capitalismo, eram coagidos a pagar portagens (e abastadas) para terem salvo-conduto pelos mares sulcados. As receitas eram usadas pelos piratas para a justiça social. Por isso os mares eram límpidos. Por isso, já não havia gente a dormir ao relento, nem crianças a morrerem antes do tempo, nem doentes condenados ao sofrimento por carência de remédios, nem gente amordaçada pelo desamor. Por tudo isto, eram piratas bons (a justiça social é geneticamente inspiradora).
Em homenagem aos lugares-comuns e à previsível narrativa, depois de seguir viagem um oásis veio na minha direção. Uma ilha pequena no meio do mar, com árvores exóticas a preceito e ninfas prometendo deleites carnais. Sábio, evitei a miragem da ilha e não caí no ardil do dilema do prisioneiro. E depois, medi o pulso, tomei conta da pele e deixei os olhos na tarefa de consultarem o lugar em que estavam.
Se vi uma miragem, os meus olhos não viram nada. A não ser que tudo se resuma aos sonhos e não se consiga emergir do poço sem fundo onde eles medram.