29.8.16

Eu vi uma miragem

Dead Can Dance, “All in Good Time”, in https://www.youtube.com/watch?v=Mt5HRjPWuPY
Calçado em duas galochas de cortiça que me faziam levitar sobre as águas do mar, percorria o chão molhando entre os dois cais separados pela distância de ferro. Vi vacas a pastar em campos de algas. Um comboio barato ecoava ao longe; devia ser o vento dominante a segredar o uivo do comboio, pois a distância até ao horizonte não deixava à mostra a composição que, pelo troar das carruagens em cima dos trilhos cadenciados, devia seguir à velocidade de um comboio de alta velocidade.
Desviei-me do caminho para beber água, que o caminho mapeado não tinha água potável. Parei num apeadeiro onde estavam três velhos cowboys montando cavalos viçosos. Ao balcão do estabelecimento, uma rapariga nova e inexperiente processava os pedidos com a lentidão que quadrava com a inexperiência. No cimo do telhado, hasteada uma bandeira com motivos piratas. O mar era domínio público, não havia nação que lhe conseguisse meter a mão. Mandavam os piratas que apascentavam os mares.
Os piratas não eram malévolos. Não tinham propósitos fraudulentos, por assim dizer. Os piratas contemporâneos jogavam-se aos mares, embarcados em suas tecnologicamente avançadas barcaças, para fazerem como outrora era função de justiceiros como Robin dos Bosques. Os petroleiros e os grandes navios da marinha mercante, porta-estandartes do maléfico capitalismo, eram coagidos a pagar portagens (e abastadas) para terem salvo-conduto pelos mares sulcados. As receitas eram usadas pelos piratas para a justiça social. Por isso os mares eram límpidos. Por isso, já não havia gente a dormir ao relento, nem crianças a morrerem antes do tempo, nem doentes condenados ao sofrimento por carência de remédios, nem gente amordaçada pelo desamor. Por tudo isto, eram piratas bons (a justiça social é geneticamente inspiradora).
Em homenagem aos lugares-comuns e à previsível narrativa, depois de seguir viagem um oásis veio na minha direção. Uma ilha pequena no meio do mar, com árvores exóticas a preceito e ninfas prometendo deleites carnais. Sábio, evitei a miragem da ilha e não caí no ardil do dilema do prisioneiro. E depois, medi o pulso, tomei conta da pele e deixei os olhos na tarefa de consultarem o lugar em que estavam.
Se vi uma miragem, os meus olhos não viram nada. A não ser que tudo se resuma aos sonhos e não se consiga emergir do poço sem fundo onde eles medram.

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