Madredeus e Carlos Paredes,
“Mudar de Vida/Canto de Embalar”, in https://www.youtube.com/watch?v=VADq-sw0-Yw
“Há tanta
coisa para amaldiçoar que às vezes esquecemo-nos de louvar as nossas sortes.”
Miguel Esteves Cardoso
Todos temos um lado negro. Como todos temos – e sabemos
ter – que há um lado frágil que não queremos mostrar quando somos fotografados.
Quando temos um lado negro, podemos ter medo do pântano em que o lado negro se
emaranha.
Às vezes, as forças gravitacionais, escondidas na mais
do que penumbra do lado negro, metem-se em reboliço e vingam por entre o resto.
Parecem derrotar o resto, o que se oferece em oposição ao lado negro, o que
merece o encantamento dos sentidos, o que merece a celebração das artes. Os fragmentos
voláteis de coisas desimportantes
ganham textura. Contra a vontade, a julgar pela certeza que a vontade atua por
intermédio dos antípodas do lado negro. Mas a vontade pode ser açambarcada por
vultos que desviam o olhar para uma água que navega num poço sem fundo, talvez
sem saber se no poço sem fundo haja sequer água – ou, em havendo, se essa água
não é um ardil que nos atira para convulsões dispensáveis.
Todos temos um lado negro, um pedaço de fado que
certifica que somos matéria humana. Aberta às fragilidades, por vezes
denunciada pelas contingências. E divergimos na hora de domar os vultos que vêm
das profundezas do lado negro preparados para estilhaçar o que nos interessa
conservar, que é tudo o que merece celebração e asfixia o lado negro no seu
emudecimento. Talvez a fraqueza maior seja não conseguir domar as ondas
tempestuosas congeminadas pelo lado negro. Sem darmos conta, deixamos que o
lado negro ofereça o seu rosto e se componha como sobressalto que amputa o
tempo da sua lógica.
Ao encontro da lucidez que entrou em descaminho, os
pontos cardeais refazem-se na convocatória da fortaleza interior que parte em
demanda do lado negro – a sua presa por diante. A função tem de ser precedida pelo
convencimento que o lado negro, o lado negro que todos temos, não é uma
fatalidade; e que esse lado negro, em periódica emergência, está à mão de
semear, titubeia entre os dedos fortes se as mãos souberem ser, também elas,
fortes.
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