3.8.16

O lado negro


Madredeus e Carlos Paredes, “Mudar de Vida/Canto de Embalar”, in https://www.youtube.com/watch?v=VADq-sw0-Yw    
Há tanta coisa para amaldiçoar que às vezes esquecemo-nos de louvar as nossas sortes.” Miguel Esteves Cardoso
Todos temos um lado negro. Como todos temos – e sabemos ter – que há um lado frágil que não queremos mostrar quando somos fotografados. Quando temos um lado negro, podemos ter medo do pântano em que o lado negro se emaranha.
Às vezes, as forças gravitacionais, escondidas na mais do que penumbra do lado negro, metem-se em reboliço e vingam por entre o resto. Parecem derrotar o resto, o que se oferece em oposição ao lado negro, o que merece o encantamento dos sentidos, o que merece a celebração das artes. Os fragmentos voláteis de coisas desimportantes ganham textura. Contra a vontade, a julgar pela certeza que a vontade atua por intermédio dos antípodas do lado negro. Mas a vontade pode ser açambarcada por vultos que desviam o olhar para uma água que navega num poço sem fundo, talvez sem saber se no poço sem fundo haja sequer água – ou, em havendo, se essa água não é um ardil que nos atira para convulsões dispensáveis.
Todos temos um lado negro, um pedaço de fado que certifica que somos matéria humana. Aberta às fragilidades, por vezes denunciada pelas contingências. E divergimos na hora de domar os vultos que vêm das profundezas do lado negro preparados para estilhaçar o que nos interessa conservar, que é tudo o que merece celebração e asfixia o lado negro no seu emudecimento. Talvez a fraqueza maior seja não conseguir domar as ondas tempestuosas congeminadas pelo lado negro. Sem darmos conta, deixamos que o lado negro ofereça o seu rosto e se componha como sobressalto que amputa o tempo da sua lógica.
Ao encontro da lucidez que entrou em descaminho, os pontos cardeais refazem-se na convocatória da fortaleza interior que parte em demanda do lado negro – a sua presa por diante. A função tem de ser precedida pelo convencimento que o lado negro, o lado negro que todos temos, não é uma fatalidade; e que esse lado negro, em periódica emergência, está à mão de semear, titubeia entre os dedos fortes se as mãos souberem ser, também elas, fortes.

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